terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Bagagem crônica

De novo aconteceu: a gente nem bem começa a viagem e já tá se atacando pelo excesso de bagagem. Isso que dessa vez nos demos o desafio de cada um vir com apenas uma mochila. Saracotear em trocentos estados de frio e calor entre sul e nordeste por trinta e cinco dias com meras duas mochilas? Porque não custa sonhar. Mas é lógico que bem antes da metade da viagem, embalando as tralhas de Teresina pra São Luiz, a gente já tem dois baita volumes a mais. Tipo a casa nas costas. (Acabo de me dar conta de que o meu arsenal de histórias pessoais envolvendo o assunto bagagens certamente encheria páginas e páginas de um livro bizarro e volumoso.) Cada vez que sou provocada sobre a parte que me cabe no crescimento assustador da bagagem, contra-ataco com o quase único argumento consistente que trago na ponta da língua: "Mas pra que tu foi trazer uma toalha de banho, um CASACO DE COURO e um TRAVESSEIRO que ocupa quase uma mochila inteira, se a viagem é quase toda no nordeste? Pode deixar que não tem perigo de ficarmos numa mísera pousada que não disponha de travesseiro e toalha". Ele esperneia que os três itens juntos cabem no mochilão dele, onde ainda sobra espaço até pra coisas minhas. Eu tento manter a linha argumentando que ele, agindo assim, é o próprio Débi em viagem na cena em que sai pra comprar "só umas coisinhas básicas", porque o Lóide o adverte de que não estão podendo gastar, e logo ele volta com um baita chapéu mexicano na cabeça e catorze cataventos de papel nas mãos. Nesse ponto exato da discussão estamos em Alcântara-MA, sentados num banco na praça da Matriz, que deduzo ser a principal ruína dessa incrível cidade histórica de casarios "que parou no tempo". Só deduzo, pois não contratei uma visitação guiada como desejava, justo pela insistência dele em me acrescentar que "Tu nunca sai de férias, o que tu faz é viagem de estudos, pra que isso tudo? Comé que tu descansa desse jeito? Toda vida esse excesso de bagagem e informação, a gente nunca descansa, a gente sempre volta pra casa no bagaço, que inferno, um dia tu ainda tem um infarto!" Só pra baixar a tensão da conversinha amigável, ok, aceito mea culpa, pronta pra seguir viagem me sentindo a maior analfabeta cultural daquela cidade, onde, afinal, fizemos ótimos outros passeios, ok, ok, não é o fim do mundo não se inteirar das particularidades que tornam mega pitoresco o lugar incrível e longérrimo de casa onde super excepcionalmente se está. Dito isto, a gente se olha na intolerância dum entendimento assim meio enviezado, sob a impossivelmente cínica promessa mútua de que não poderemos adquirir mais nada de volume no resto da viagem, que tá só na metade. Ok de um lado e de outro. Mas logo que a gente vira a esquina, tem um vendedor de artesanatos e antiguidades com peças na calçada. Vamo vê? Dez minutos depois, a gente segue pra pousada com DUAS ENORMES CHAVES DE FERRO na bolsa. No meu coração só cabe o feitiço de sentir séculos e séculos de histórias impregnados nessas duas chaves imensas que, explicou o vendedor, fizeram parte de antiquíssimos casarões dos quais talvez já não restem nem mesmo as ruínas.
Seguimos viagem cheios de uma ridícula gentileza transbordante, "eu pago, tu carrega", isso dito assim entremeado por sorrisos meio piegas e até abestalhados, cada qual não cabendo em si de tanta alegria pelo garimpo excepcional, uma verdadeira serendipidade, apesar de não precisarmos de uma balança pra saber que o par de chaves gigantes vai aumentar, tranquilamente, bem mais de dois quilos no tumulto volumoso que sempre é a nossa bagagem.