terça-feira, 14 de agosto de 2018

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA




FÁTIMA BARRETO




Natural de Laguna, Fátima já residiu em Imbituba, onde sua mãe lecionava; em Lauro Müller, em razão de seu trabalho; e em Florianópolis, desde a graduação em Educação Física, pela UDESC, tendo ainda lecionado na capital e trabalhado no departamento de educação física da Secretaria de Educação, quando esta realizava os Jogos Abertos. 

Uma reflexão sobre a Laguna de hoje? “Ela tem a missão de se reerguer, como o país, nesse momento dramático. Acredito na juventude. Laguna precisa retomar seu caminho, em especial na cultura, que é historicamente seu expoente maior. O polo da UDESC aqui é um baita diferencial, que já mudou o destino dos jovens que não precisam sair da cidade pra estudar. Idem sobre o que o SESC oferece para Laguna. E penso que vale a pena as escolas fundamentais e secundárias darem um gás a mais em se tratando de cultura e literatura. Laguna já viu Bibi e Procópio Ferreira encenando O Avarento, de Molière, no Cine Teatro Mussi. Atrações desse nível não podem ser apenas lembranças distantes. Sinto que muitos lagunenses, talvez acostumados com o que a cidade naturalmente oferece, acabam não percebendo sua magnitude. Mas gente de outros lugares se apaixona por ela, vem morar aqui, e não raro são os que mais a valorizam e fazem a diferença. Conheci uma família esses dias, vinda de fora, morando agora num bairro da área rural de Laguna: um capricho com o que plantam, com tudo. E o menino já leu mais de uma centena de livros. Isso me renova a esperança no presente e no futuro.” 

Qual sua arte? “Literatura e fotografia. Comecei como cronista no jornal A Gazeta, em Floripa, durante a faculdade. Das minhas maiores influências destaco Adélia Prado, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, e a poesia em geral. Também já me interessei muito pelos autores catarinenses. Por longo tempo publiquei em jornais lagunenses. E na fotografia, quando professora, em Lauro Müller, com meu primeiro salário comprei uma máquina numa lojinha da rodoviária, e saí fotografando tudo. Quando nasceu minha filha, comprei uma máquina potente, que depois ficou um tempo de lado, até eu ir morar no Mar Grosso. A natureza local me inspira muito. Algumas fotos minhas viraram capas de livros.” 

Participa de outros grupos? “Sim, do Carrossel das Letras, que eu quis muito integrar. A foto da capa do nosso primeiro livro, Encontros, é minha. Há quatro anos moro em Floripa, e lá também integro a Confraria do Pessoas, que relembra as pontes entre Brasil e Portugal. 

Conheceu o Chachá? “Sim. E escolhi a arte dele pra abordar em meu trabalho final do curso de História da Arte, na Unisul, em Tubarão. A professora Valdézia gostou muito, e ele acabou exposto na biblioteca da instituição. E a partir disso, por e-mail, também acabei fortalecendo minha amizade com a Jaqueline Bulos, filha do Chachá, que na época já morava na Suíça.” 

Que mensagem gostarias de deixar às gerações futuras dessa nossa cidade tão peculiar? “Existe uma tendência de se evitar política/políticos. Mas, ainda mais numa cidade pequena, é importante um maior engajamento nessa área. Acho a população tão alheia nisso. Não me sinto tão habilitada a mandar um recado lá pra longe no tempo, mas creio que cultura e desenvolvimento econômico andam juntos. Dia desses, fui assistir à Camerata Frankenstein e tive a alegria de ver de novo o que é arte e beleza, porque é isso que tem que acontecer. Cultura e educação precisam estar atentas a isso. Então, para os que vêm, em resumo diria: buscai os livros.”

domingo, 12 de agosto de 2018

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA


(publicado inicialmente em https://issuu.com/ocorreio/docs/ed_1453)


LAURA BURIGO



Natural de Lages, de onde saiu aos 23 anos, morando também em Canoinhas, Três Barras, Curitiba, Imbituba e Florianópolis, veio para Laguna em 2007, como 1ª colocada em concurso público para lecionar artes em escola municipal. Na época fixou-se no Sertão da Estiva, hoje Pescaria Brava, pelo verde do entorno e porque lá podia cumprir seu expediente semanal em local único. 

Sua formação? “Estudei em colégio de freiras e depois em escola pública estadual, em Lages; me licenciei em artes visuais pela UDESC, em Florianópolis; lecionei artes. Agora estou aposentada e não paro de fazer “arte”… Artes visuais contemporâneas. 

Que reflexão gostaria de compartilhar sobre a Laguna de hoje? “Como 3ª cidade fundada no estado, posso, em termos históricos, dizer que nasci nela (num lugar que já pertenceu a ela), o que para mim é uma honra. No entanto, a Laguna de hoje é praticamente uma sombra do que já foi, em progresso, prosperidade e preservação da natureza. Ainda gosto dela, conheço-a desde 1966, já não sei quantas vezes voltei. Sim, bebi a água da Carioca”. 

Que arte produz? “Produzo o que há anos chamamos de arte contemporânea. Embora use também materiais clássicos, faço muito uso de material descartado, às vezes encontrado nas ruas. Penso que produzo arte desde muito jovem, não sei exatamente quando e como começou. Só tomei consciência de que o que fazia era realmente arte já na faculdade, lá pelos 50 anos. Demorei a aceitar. Hoje me sinto bem como artista visual”. 

Gostaria de destacar alguma experiência sobre grupos ou coletivos de arte e afins? “Integro o Instituto Chachá desde a fundação. Participei ativamente de oficinas de arte e artesanato em Curitiba. Em Imbituba, além da escola, desenvolvi muitos trabalhos incluindo música, teatro e artesanato, em projeto da FUCABEM. E lá, quando presidente do grupo de artesãos, organizei nossa ida à Festa do Senhor Bom Jesus dos Passos, em Imaruí. No dia não levei minhas peças (cerâmicas grandes e pesadas), pois fomos de ônibus fretado. Eu não sabia que no dia da tal festa não saía ônibus nenhum de Imaruí. Resultado: sem ter levado nada para expor, tive de ficar o dia todo lá, com minha família me esperando em casa e sem poder avisá-los. Já participei de inúmeras oficinas de arte, e destaco a que aqui foi ministrada por italianos de Ravena (‘cidade-irmã’ de Laguna) especialistas em mosaico bizantino, onde aprendi inclusive sobre o histórico desse trabalho tão famoso por suas peculiaridades”. 

Conheceu o Chachá? “Não, mas atualmente tenho amigos que o conheceram. Meu genro tem uma coleção significativa de obras dele, até doou uma tela grande recentemente ao nosso instituto. Minha filha trabalhou com ele na prefeitura. Muitos o referem como uma pessoa bem-humorada, que pintava sem parar e ainda escrevia manualmente para um jornal. Existem histórias e estórias sobre ele, que assim vai se tornando lenda”. 

Sobre memória e compartilhamento da cultura local e do fazer artístico e cultural, que mensagem gostarias de deixar para as gerações futuras que habitarão essa cidade tão peculiar que é Laguna? “Sabemos que hoje a cultura infelizmente não interessa muito ao poder público. No entanto, acredito que há muitas pessoas interessadas por música, teatro, artes visuais e outros segmentos culturais importantes, e que podem, sim, despertar nos jovens o entusiasmo por essa cidade peculiar”.

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA


(publicada inicialmente em https://issuu.com/ocorreio/docs/ed_1449)


IZABEL CRISTINA VIEIRA




Natural de Bom Retiro, no estado catarinense morou também em Urubici, Lages e Pinhalzinho; depois em Porto Murtinho/MS; após, em três cidades mato-grossenses: Juína, Aripuanã e Canarana; no exterior, residiu em Sintra e Lisboa, ambas em Portugal; voltando ao Brasil e ao estado de origem, morou na vizinha Tubarão, e finalmente fixou-se em Laguna, onde até então permanece. “Escolhemos Laguna pelas belezas naturais que propiciam uma melhor qualidade de vida, e pela proximidade com Tubarão, pois meu ex-marido trabalhava na Unisul.” Atualmente doméstica e tendo se diplomado no Magistério, Izabel destaca que em razão das várias mudanças entre cidades tão distantes, envolveu-se, ao longo da vida, especialmente com suas três filhas e com a casa. 

Sobre que reflexão gostaria de compartilhar a respeito da Laguna de hoje, ela destaca: “Fico preocupada com o nível cultural e o pouco investimento. Quando há projetos a divulgação é pouca”. 

Questiono sobre o contexto de sua produção ou inspiração artística e participação em segmentos e movimentos culturais na atualidade. “Gosto e me atrevo a dizer que a arte me inspira na busca de aperfeiçoamento pessoal e espiritual. Estou sempre em busca do belo, da perfeição, da harmonia… Gosto de pintar, tecer (tear), amo fotografar, tenho na música um amor à parte, estou sempre buscando também o som perfeito. Tendo sido convidada a conhecer, estou hoje integrando o Instituto Chachá, onde encontrei pessoas dispostas a levar avante projetos artísticos e culturais”. 

Sobre nosso pintor homenageado, Chachá ou Richard Calil Bulos, pergunto se o conheceu pessoalmente. Se sim, que lembrança tem? Se não, que ideia faz? “Não o conheci. Vejo-o como uma pessoa de percepção aguçada, sensível… Pintou o cotidiano de forma suave, com traços firmes mas evanescentes, marcantes nas tramas e redes de pesca dos personagens”. 

Por fim: considerando nosso cenário municipal atual, e considerando estares fazendo parte deste grupo, preocupado com a memória e o compartilhamento da cultura (local e global), da arte e do fazer artístico e cultural, que mensagem gostarias de deixar para as gerações futuras, principalmente as que habitarão essa cidade tão peculiar que é Laguna? “Minha mensagem é no sentido de unir o belo e a beleza. De natureza prodigiosa, Laguna é ainda um riquíssimo patrimônio histórico… Eu destacaria, por exemplo, a importância de aproveitar melhor os espaços preservados para fomentar a cultura e as mais variadas expressões artísticas, desenvolvendo, dessa forma, o potencial criativo dos que aqui moram e estimulando outros a virem pra cá, trazendo outras experiências e assim enriquecendo a oferta”.

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA


(publicada inicialmente em https://issuu.com/ocorreio/docs/ed_1443)

CRISIANE NUNES BEZ BATTI




Natural de Vacaria/RS, Crisiane escolheu, com o esposo, a cidade de Laguna para morar, há quinze anos. Surda desde os dois anos, é formada em pedagogia e pós-graduada em educação especial e Libras. É a primeira/atual presidente da Associação Lagunense de Pais, Amigos e Surdos (ALPAS). 

Que reflexão ou observação pessoal gostaria de compartilhar sobre a Laguna de hoje? Sua resposta está no contexto de uma vitória recente, que, com o apoio de algumas outras pessoas e entidades, protagoniza: “Laguna ultimamente vem sendo pioneira na educação voltada para surdos, como no caso da sala bilíngue, única em todo o estado catarinense”. 

Além de ingressares no Instituto Chachá em 2017, e lá dares suporte para que nossas atividades sejam bilíngues (português + libras), participas de mais algum grupo ou coletividade cultural? Gostarias de destacar alguma experiência? “Sim. Dentre as várias atividades que a ALPAS já proporcionou à comunidade surda (tão carente em suas peculiaridades, não só na cidade mas de forma geral), estão três grandes encontros, no Cine Teatro Mussi, que proporcionaram o acesso do público, principalmente vindo da comunidade surda de Laguna e cidades vizinhas, a conteúdo de alta qualidade, pensado com muito carinho e cuidado, com palestrantes de alto nível de capacitação em diversas áreas (jurídica, pedagógica, acadêmica, social, médica, familiar, etc). 

Conheceste pessoalmente Richard Calil Bulos, o Chachá? Se sim, que lembrança tem dele? Se não, que ideia faz? “Não tive a oportunidade de o conhecer. Mas agora, pela obra que nos deixou, não tem como não me encantar com suas cores e figuras tão singulares, com os traços e nuances de cada uma de suas telas, tão cheias de vida. 

Considerando a Laguna atual, e estares integrando o Instituto, preocupado com a memória e o compartilhamento de sua arte e cultura tão peculiares, que mensagem gostarias de deixar para as gerações futuras que a habitarão? “Laguna tem uma riqueza histórico-cultural rara. Mas isso precisa ser melhor aproveitado, enquanto é tempo. Em 2017 a ALPAS participou da semana cultural, com divulgação de material sobre libras e cultura surda. Foi emocionante para nós esse compartilhamento e podermos prestigiar as apresentações trazidas, mas foi um tanto frustrante o desinteresse da população em geral. O que talvez se explique, em parte, pela própria organização do evento, contratando os artistas muito em cima da hora e divulgando a agenda mais de última hora ainda. Falta levarmos nossa riqueza lagunense mais a sério. Tenho em andamento um projeto de pesquisa e resgate histórico do uso da língua de sinais em Laguna. Não é tarefa simples: por diversos motivos, desde sempre os surdos foram mantidos à margem da história oficial (e em muitos casos ainda hoje é assim). Mas o resultado é gratificante, e me reforça a consciência de estar fazendo a minha parte”.

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA


(publicada inicialmente em https://issuu.com/ocorreio/docs/ed_1440)


ANDRÉA CRISTIANE NUNES





Natural de Capinzal/SC, tendo morado também em Treze de Maio, Lages e Tubarão, Andréa fixou-se em Laguna em 2017, em razão do trabalho do esposo. 

Formada em Direito, atualmente faz pós-graduação em gestão pública e estuda para o mestrado em ciências da linguagem, além de trabalhar num escritório de advocacia. 

Sobre que reflexão gostaria de compartilhar a respeito da Laguna de hoje: “Laguna tem um grande potencial, porém ainda está adormecida em alguns aspectos”. 

Questiono sobre o contexto de sua participação em segmentos e movimentos culturais na atualidade. A resposta não foi menos que essa: “Ano passado li uma reportagem sobre uma indígena que teve a mão decepada por motivos ligados à demarcação de terras, mas desde pequena me interesso sobre essa cultura. Lia, via fotografias nas páginas da National Geographic que meu pai colecionava e meus olhos brilhavam. Pensava que um dia eu ainda ia conhecer as aldeias, a cultura desse povo, e de fato realizei esse desejo. Participo também de um coletivo que luta pelo direito à moradia, estamos nos reorganizando no Estado. Sempre participei como voluntária em outras áreas. Atuei alguns anos ativamente dentro da entidade Cáritas (sinônimo de “caridade”), lá temos hoje alguns trabalhos junto aos imigrantes (africanos, haitianos e venezuelanos).” 

Além de todas essas vivências, cujo compartilhamento desde já enriquece a alma e as atividades deste nosso Instituto Chachá onde recentemente ingressaste, inclusive compondo a diretoria como Primeira-secretária, gostarias de destacar alguma outra experiência? “Sim, sobre o trabalho com os indígenas. No começo do ano passado participei de um encontro em Goiás, onde tive a chance de conhecer voluntários e representantes de diversas comunidades tradicionais, como os extrativistas, geraizeiros, quilombolas, catadores de flores, indígenas, pescadores artesanais e outros. Foi muito bonito ver tanta diversidade reunida num só lugar”. 

Voltando ao nosso pintor homenageado, Chachá ou Richard Calil Bulos, pergunto se o conheceu pessoalmente. Se sim, que lembrança tem? Se não, que ideia faz? “Não o conheci, mas conheço suas obras. A ideia que faço dele é de uma pessoa muito sensível que tinha um talento maravilhoso”. 

Por fim: considerando nosso cenário municipal atual, e considerando estares fazendo parte deste grupo (ICC), preocupado com a memória e o compartilhamento da cultura (local e global), da arte e do fazer artístico e cultural, que mensagem gostarias de deixar para as gerações futuras, principalmente as que habitarão essa cidade tão peculiar que é Laguna? “Acredito que temos o dever de preservar e valorizar o que temos. Algumas vezes não conseguimos ver o valor do que possuímos. Mas a história se constrói no hoje, então a responsabilidade é de todos, é do coletivo, e é importante percebermos isso a tempo, para que esses nossos valores não se percam. Estarmos abertos a conhecer, experienciar, fazer a nossa parte sem prejulgamentos, se desprender, se despojar… Acredito que tudo isso nos torna pessoas melhores e também contribui para a compreensão do nosso semelhante”.

UM BEM-TE-VI NA MINHA CASA

(Publicado primeiramente no Jornal O Correio)

São sete horas da manhã, e, diferentemente do Cazuza, não vejo o Cristo na janela: moro em Laguna e estou em casa. O despertador do meu celular é perfeito, e cruel. Não estando de férias, com ou sem a bênção do Cristo na janela é hora de fazer o dia render. Mas, nesta última semana de férias escolares, minha casa e rotina são visitadas por um ser estranho e raro: uma criança, de verdade, que tem sete anos e se chama Ezequiel. Ele ainda dorme, na sala, enquanto repasso mentalmente, antes de me levantar, tudo que tenho pra fazer hoje. Nisso, nem fazem barulho mas ouço, ouço mais de saber do que de ouvir: seus passinhos de pluma já lá vêm, da sala pro quarto. Ele se enfurna tão rápido e sonâmbulo pra dentro das cobertas e do nosso abraço, primeiro no do tio, só depois será no meu, que não deve nem perceber o frio medonho que tá fazendo. Ainda mal acredito, um gurizinho de novo na minha casa. A criança mais recente da minha família, antes dele, tinha sido meu próprio filho, já faz tanto tempo. Durante a semana, e a despeito dele nem ser tão levado, pequenos desastres acontecem. Não me desespero: lembro vagamente que isso é normal. Como na tarde em que o tio Van faz uma fogueira: Ezequiel fica pertinho se aquecendo, maravilhado. Tio Van manda sair de tão perto, que ali ele pode se queimar. Ele sai contrariado, fica vendo a fogueira a uns três ou quatro metros de distância. E então, do fogo salta uma fagulha que acerta bem na sua bochecha! Ouvindo o relato, lembro quando quase quebrei a perna atravessando uma rua na faixa: era bem lá que se escondia um buraco. Sei que de longe sua mãe se preocupa se ele tá bem, se tá agasalhado, se alimentando, etc. Digo que quando ele nasceu, botaram estômago de passarinho nele. Nem besteira ele faz muita questão de comer. Agora tô dizendo que ele tem apetite de grilo, ele ri. Mas dia desses ele come o almoço com tanta vontade, que até me empolgo de fazer uma fotinho no whats’app pra sua mãe, minha sobrinha. Porém, mesmo com tanta pomada ele ainda tá com o queimadão na cara, e eu não contei o episódio da fogueira pra ela. Ok, não chega a ser uma grande mentira eu fotografá-lo mostrando apenas o lado do rosto sem machucado. O marketing, a publicidade, estão aí mostrando quase sempre só o lado bom das coisas. 
Já devem ser umas sete e cinquenta. Tio Van se levanta e vai no mercado providenciar o café. É agora: é hora dele se aninhar diretamente em mim, sei que é. Meu Deus, uma criança de verdade, de novo, tão perto. Olho como ele respira: parece gente. Quente. Em posição fetal, ele cabe inteiro no meu abraço dentro das cobertas. Levinho, ele é pura pluma, amarela. Tanta coisa eu tenho pra hoje, me lembro. Quando vai acordando, ele tenta de novo me ensinar a fazer peido com o sovaco. Realmente não consigo aprender, mas falo besteiras pra que não desista de mim, também sou uma criança, mesmo que talvez não pareça. Não é muito fácil, mas tento também que ele entenda nosso vínculo no mundo civil: eu sou sua tia-avó. Explico que quando fizer doze anos ele vai poder vir de ônibus nos visitar, embarcando sozinho em Araranguá. Cismado com a expressão tia-avó, ele me pergunta à queima-roupa se quando tiver doze anos nós aqui em Laguna já estaremos velhinhos. São oito e quarenta e um quando saio da cama, ajeitando pra que continue confortável no seu meio-sono preguiçoso de fim de férias. Me levanto, enfim, metade abismada e metade grata, não exatamente ao Cristo, nem à Nossa Senhora da Glória, cuja imagem, no alto do morro que leva seu nome, da minha janela eu talvez conseguisse divisar. Com o coração quente, me levanto grata por qualquer coisa que me escapa em palavras, mas que sei que tem relação com o alívio de ser uma pessoa, e não uma máquina, como meu despertador. Tenho, portanto, o direito de errar. E até o de, errando, possivelmente acertar. 

MEMBROS DO INSTITUTO CULTURAL CHACHÁ: SÉRIE ENTREVISTA

(publicada inicialmente em https://issuu.com/ocorreio/docs/ed_1466)

MARCIO JOSÉ RODRIGUES


Natural de Gravatal, já tendo residido também em Tubarão e Florianópolis, fixou-se em Laguna quando voltou da capital formado em Odontologia pela UFSC, em 1963. Hoje aposentado, exerceu o ofício até 2016. 

Sobre a reflexão que gostaria de compartilhar a respeito da Laguna de hoje, ele destaca que culturalmente a cidade está muito descaracterizada. “Laguna é um lugar onde o movimento de migração, indo e vindo, é muito expressivo, inclusive pela falta de meios de sobrevivência. O lagunense migra muito, e também recebe outros de culturas muito diferentes. Parece que o amor-próprio do lagunense anda meio carcomido. Aliás, parece que muitos dos que defendem Laguna nem são os lagunenses de nascimento. Considero a derrubada da casa de João Tomaz de Souza, onde atualmente funciona o Banco do Brasil, uma grande perda arquitetônica. O que recebemos hoje vem tudo de cima, o povo é pouco participativo. Mercado Público fechado. Várias burocracias emperrando a cidade. 

A respeito de sua produção artística e participação cultural, é uma resposta que requer fôlego. “Sempre desenhei e pintei, até fornecendo muito material para projetos na cidade, como as decorações temáticas de eventos no clube Blondin. Na música, participei do Coral Santo Antônio. E sou um dos fundadores do Coral da UFSC. Sempre escrevi os históricos e apresentações dos CDs do Coral Santo Antônio. E faço literatura e poesia. 

Participa de outros grupos/coletivos de arte, cultura ou afins? Se sim, quais? “Além do Chachá, participo do grupo Carrossel das Letras, onde já lançamos uma série de coletâneas literárias. Também participei de dois cadernos de autoria produzidos pelo SESC”. Na “Sociedade Musical União dos Artistas”, de 1860, ocupa cargos desde presidente de honra até orador. É autor de dois livros solo, “A Confraria”, que conta a história da Irmandade do Santíssimo Sacramento e de Santo Antônio (1763), e “Antônio dos Botos”, trilogia de contos que resgata histórias de pescadores açorianos/lagunenses (A visita/ O Linguado e o Siri/ O Pescador Julião). 

Sobre o Chachá, que lembrança tem? “Ele era de uma família sírio-libanesa bastante aristocrática. Seu pai era médico formado na França, que, no entanto, não conseguiu validar seu diploma no Brasil. Chachá era autodidata excelente em desenho, pintura e caricatura. Tinha uma conversa muito boa, era meu amigo pessoal. Sempre vestido impecavelmente, tinha fala amena, agradável, culta. 

Por fim: considerando nosso cenário municipal atual, em todos os âmbitos, que mensagem o senhor gostaria de deixar para as gerações futuras, principalmente as de Laguna? “Desde o homem do sambaqui, passando pelo índios carijós, a expansão europeia…, Laguna é o local do Brasil mais emblemático em torno dessa colonização sul-americana. Riquíssima em cultura, história e acervo natural. Acredito que a única coisa que um povo tem de verdade é sua própria alma. Falo das características psicossociais do povo, sua alma, falo da importância de se repassar as histórias adiante, o que muito antigamente se fazia em redor da fogueira. Isso são coisas que nos caracterizam em particular como o povo que somos. Não podemos perder o vínculo com nossas raízes. Para finalizar, me conta que criou o vocábulo “lagunidade”, se referindo ao sentido de “pertença” a este lugar. E evocando ligação não só genética, mas como se fosse o DNA do sentimento. “Observo que todos que amam Laguna, acabam se integrando e fazendo o bem pela cidade.”

quinta-feira, 7 de junho de 2018

ANTIMANICÔMIO: DE AUSTREGÉSILO CARRANO A BISPO DO ROSÁRIO


(Publicado originalmente aqui no jornal O Correio, na página 5.


A primeira vez que ouvi falar da luta antimanicomial brasileira, comemorada em dezoito de maio, foi com o próprio Austregésilo Carrano Bueno, lá pelo ano 2000, quando ele já era forte liderança na causa e amargava batalha ferrenha para poder dar seu testemunho e divulgar seu livro “O Canto dos Malditos”, adaptado para o cinema sob o título de “Bicho de Sete Cabeças”.


Divulgação/internet
Divulgação/internet


Isso foi numa palestra que deu em Araranguá, promovida pelo pessoal de psicologia da Unisul. Ele ria ao contar quão cínica era sua situação no momento: sobrevivendo a uma romaria de internações em manicômios nojentos e bizarros que durou anos, com direito a sessões infinitas de eletrochoques que lhe renderam sequelas para toda a vida, ele denunciou no livro o que chamava de máfia dos manicômios, citando inclusive o nome do médico que o torturou “em especial” naquele contexto. A família deste o processou, e Carrano, então, estava proibido judicialmente de mencionar o nome do seu algoz nas palestras e debates, sob pena de multa altíssima que lhe deveria em caso de descumprimento. 
Pelo que sei, ele nunca obedeceu.
Até seu livro foi censurado e chegou a ter a venda proibida (o primeiro caso desde a ditadura militar), o que acabou aumentando muito sua procura, inclusive pelos alunos de psicologia da universidade paranaense onde outrora, segundo ele, seu torturador, ali catedrático, havia sido dos nomes mais respeitados.
Desde 2008 já não temos Carrano, o pioneiro no país a ajuizar ação indenizatória por erro de diagnóstico e tratamento torturante contra psiquiatras. Mas sua luta sobrevive; sua memória, forte e irreverente, me lembra o privilégio de conhecê-lo e de ter podido manter contato com ele por bom tempo.


Na última vez em que estive com ele
(tivemos a sorte de encontrar o Hermeto Pascoal numa agência bancária :) 

bem depois descobri a importância do nome de Nise daSilveira, psiquiatra que entre tantos grandes feitos ao longo da vida (incluindo o trabalho incrível que resultou no Museu de Imagens do Inconsciente), se recusou sistematicamente à então comum prática do eletrochoque. Ela, cuja vida também já inspirou filmes e muitos estudos, merece uma rendição de pensamentos à parte.
Só mais depois ainda é que vim a descobrir, apaixonada e sem reservas, o nome de Arthur Bispo do Rosário. O sergipano de Japaratuba que depois de um surto, no Rio, acabou internado num manicômio onde passou quase cinquenta anos, alternando períodos de internação compulsória e facultativa, com suas particularidades tantas que o fazem merecedor de muitos, muitos, muitos textos e estudos.
Bispo, o ser humano que, entre internos e funcionários, mais tempo passou dentro da Colônia Juliano Moreira, onde produziu sua arte incansavelmente, em especial bordando, desfiando roupas velhas para inventar sua linha, e assim deixando sua marca única estampada no mundo.

Arquivo pessoal


No mundo, diga-se, equilibrado entre a arte e a loucura: esses textos e estudos procuram, cada qual por seu viés, ainda hoje entender o fenômeno que ele foi (tentativas que já renderam filmes, livros, teatros...).
Sepultado em 1989 sem honras e “sem deixar bens”, ele no entanto tem obras expostas em museus dos mais respeitados ao redor do mundo. 
A geografia e a história da Colônia, hoje convertida em Museu Bispo do Rosário, no bairro da Taquara, tão distante dos museus cariocas mais badalados e conhecidos, vale muito a visita. Tem guia que acompanha nas exposições, montadas com obras de Bispo e de outros atuais usuários do espaço, onde funciona atividades de CAPS, oficinas de arte em mosaico e outras. 
E, pra quem ama gosta, ainda se pode visitar o entorno, incluindo a passagem por ruínas imperiais e a cela onde Bispo passava meses voluntariamente trancado, produzindo. Transformando lixo em sua forma mais expressiva de estar no mundo de maneira única.

Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

Arquivo pessoal


Quando cheguei ao “Manto da Apresentação”, que ele produziu para se apresentar a Deus no dia do Juízo Final, o guia me disse, orgulhoso: “Aqui, essa é a nossa Monalisa”. Era meu terceiro de trinta dias de férias, e eu então sabia que toda a viagem recém-começada já tinha valido a pena, ali mesmo, resumidamente, na frente do Manto do Bispo.

Arquivo pessoal

O cenário da então Colônia, com datas e nomes cruzando a todo tempo a "paisagem"... Está tudo ali, imortalizado em bordados feitos com roupas velhas que ele, interno que não recebia visitas, se desdobrava pra conseguir  

Esse punhado de memórias esparsas é dizer gratidão a essas pessoas.
E lembrar palavras da Nise: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata”. 


Divulgação/internet


O tempo não para, e se lembrar também é viver, lembrei que já deu dezoito de maio outra vez.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

ELEIÇÃO DA DIRETORIA E DO CONSELHO FISCAL DA ASSOCIAÇÃO LAGUNENSE DE PAIS E AMIGOS DOS SURDOS – ALPAS

Divulgando:







EDITAL DE CONVOCAÇÃO DE ELEIÇÃO DA Diretoria e do Conselho Fiscal DA ASSOCIAÇÃO LAGUNENSE DE PAIS E AMIGOS DOS SURDOS – ALPAS – Gestão 2018-2020.

A Associação Lagunense de Pais e Amigos dos Surdos, através de sua Diretoria, devidamente representada pela sua Presidente, Crisiane Nunes Bez Batti, tudo em consonância com o estabelecido no Estatuto Social da Associação, convoca todos os seus associados em dia com suas obrigações institucionais para participação no processo de eleição da sua Diretoria e Conselho Fiscal gestão 2018-2020, conforme previsto no art.36 do Estatuto Social da ALPAS, através de ASSEMBLEIA GERAL especificamente designada para este fim, a acontecer a partir das 19:30h do dia 15 de janeiro de 2018, nas dependências da Escola de Ensino Médio Almirante Lamego (CEAL), rua Celso Ramos, 96, Centro, Laguna/SC, CEP 88790-000.
De acordo com o art. 36 do Estatuto Social da ALPAS, “as eleições para dirigentes da Entidade realizar-se-ão a cada 02 (DOIS ANOS) na PRIMEIRA QUINZENA DE JANEIRO, pelos integrantes da Assembleia geral, para eleição da Diretoria e do Conselho Fiscal.”
A apresentação da inscrição de eventuais chapas para concorrerem na eleição da nova diretoria deverá ocorrer em primeira chamada, ou seja, às 19:30h, por escrito, onde conste obrigatoriamente a assinatura e qualificação completa de cada candidato.

Laguna, 4 de janeiro de 2018.




Crisiane Nunes Bez Batti
PRESIDENTE DA ALPAS