sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

mãos vazias










um sol se indo
eu te ofereço
ou uma nuvem
ou desenho abstrato
– sempre gostei de abstrato –
ou sementes variadas
ou água fresca
servida nas mãos
ou só as mãos
carregando nada

tu, que tens olhos bons
já viste a lindeza
de mãos vazias
compondo tela
de pintura muda?

tu, que és tanta luz
– e eu sempre soube –
e tens palavras
que antes de dizeres
eu não sei que tens
e só as descubro
em cada agora
em que me chegam
– cada vez é um agora –
e me espanto

tu conheces, afinal
o gosto, a hipnose
de mãos em repouso
oferecendo o nada
em calmo e silencioso
estado de graça?

pois fica com o nada
que tenho agora nas mãos
ele já é teu
sê gentil como sempre
e cuida bem desse nada
que me é tão precioso

e o que não tenho nas mãos
reflete o rosa e o laranja
e os outros tons furta-cor
desse sol que quase todo dia
se deita na minha lagoa



Lagoa de Santo Antônio dos Anjos de Laguna

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

cidade adversa

vê bem
vindos de todo lado
eles chegam aos milhares
entre dezembro e março
maravilham-se
e se vão

eu não
eu vim e fiquei
disse até mais! àquela outra
tão boa também

lá deixei tesouros
canteiros de hortaliças
oito velhas laranjeiras
em franca produção
amoreiras furta-cor
uma dálmata parindo
o tempo esculpindo o areal
das dunas da praia com ventos
tanta gente amiga
a família quase inteira
deixei até a mãe

sobretudo, vim

vim trazendo o filho
uma bagagem menor que a de sempre
um olhar de quem nunca viu
e o coração extremado
incabível
sem tamanho

é que a cidade me cativou
é que Anita me comoveu
é que a fonte me enfeitiçou
foi tudo sem palavras
mas que bom
mas que bom que vim
e que fiquei

eles vêm, eles vêm
para o verão
o carnaval
a república
para dias de bonança
e se vão

e eu prefiro
é a cidade vazia
fria fria
do outono do inverno
me apetecem com gosto
os dias e as noites
de vento nordeste
de chuva essa chuva
a lagoa sem botos

como pedir só calor e multidão
se é no tempo adverso
que minha paixão tem crédito
e meu amor é insuspeito?

na praça da igreja
livre de gente
tomada de vento que uiva
[valsam fantasmas
de gente célebre?]
circulo a figueira-relíquia
aquela
da nau do Giuseppe
e o que penso
desenha-se fiel
em meu semblante
de quem levita
estou em casa

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

labirinto de acesso

tu: castelo fincado em nuvens
fortaleza com asas
ou um símbolo melhor
e que me escapa

eu sei
[eu já sempre sabia]
devo é calar:
minha fala denuncia
a vossa nobreza
minha tanta ignorância

devo fechar os olhos
sobretudo isso:
fechar os olhos

em silêncio
e de olhos fechados
só assim
talvez
uma chance de sorte
um passo bem dado
uma pista
do teu labirinto de acesso

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

claridades

‘alcança-me a lua’
eu te peço, distraída
e baixo os olhos na direção da areia
quilometragens de praia vazia
o Atlântico lambendo terra
mais ou menos firme
um quase silêncio

espelhada na areia úmida
nem devia dizer que é lua cheia
a fim de evitar um chavão
mas é
e bem cheia

e eu já quase confesso
mas porque inda é cedo
invento uns rodeios
eu te distraio
disfarço e tudo
mas não agüento
já logo digo

andar por aqui
pela vida e tal
é até bem bom

terça-feira, 30 de setembro de 2008

enquanto caía a luz nos Molhes

eu estava sem máquina

prum registro ad eternum


eu andava obrigada

a gravar na memória

[apenas na memória]

aquelas relações de fauna

que aconteciam tão bem


os botos-auxiliares-de-pesca

não sabiam o que é cansar

e homens-pescadores

tinham água na cintura

e redes em punho

e à espera de cardumes

também um passaredo

passarava sem fim


aquele menino se perdia

corria sem ter pra onde

nem sabia o que olhar

era cena muito vivaz

uma trama festiva demais

pros olhos de alguém

qu’inda nem falava


e mesmo eu

com retinas já crescidas

onde nem cabia tudo

tanta água tanta luz

e energia e gente

e boto e gaivota

e garça e peixe

numa cadeia alimentar

que funcionava em paz


mesmo eu me espantava

e me esmerava e bem tentava

fazia um tudo pela retenção máxima

daquele entardecer particular

segredando comigo

o melhor de tudo


[: lá estar

sem máquina]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

na areia da ampulheta

não se percebe
há pressa demais
é tempo de máquinas
vazios mascarados
infartos fulminantes
primaveras sem efeito
superações modernidades
das quais de verdade
nem se gosta tanto

não se percebe
há pressa demais
mas é peculiar a quem se pense
intuitiva feito respiração
a ampulheta de tempo-em-potência
que deixa ler o intraduzível
nos olhos dos amores
a ampulheta onde cabe a compreensão
da água
e das demais seivas da vida
e da importância de viver avivando jardins
a ampulheta que permite
na relação com o mundo
um corpo-a-corpo
uma alma-a-alma
um fôlego-a-fôlego
um espasmo-a-espasmo
uma vida-a-vida
um tudo-a-tudo
no processo de ser pessoa
para que ninguém aconteça em vão
e seja o melhor em si
às vezes sem dor
e até em silêncio

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

logo cedo

meu amigo acorda
ao som de cigarras
programadas
pontuais
no alarme do celular

quem me desperta
é o vento sul - uivando
e um passaredo
barulhando a esmo
logo cedo
em meu telhado

nada mau
nada mal

domingo, 29 de junho de 2008

domingo














um sem-fim de pessoas
não suporta domingo
o suposto dia de tédio

já eu, que nos dias úteis
muito mal respiro e vivo
tenho no domingo a redenção
o fôlego, a glória, o carpe diem
e me apego ao dia inútil
como um devoto se apega ao santo

o domingo é meu dia santo
e nele eu desejo tudo
o sono sem despertador
o incenso psicodélico
a fluência multiidiomas
uma corrida até saturno
silêncio voz sombras
riqueza de indefinições
estranhezas que devo ou não
todo o impensado eu quero
temperar com manjericão e alecrim
pintar o teto em aquarela
remeter umas quinze cartas
voar sozinha de parapente
fazer lista de intenções
e um caleidoscópio artesanal
sem prazo de validade

quero escrever tanta página em prosa
e a ampulheta só comporta uns versos

uso meu domingo salvação
listando vontades sem fim
e me cansa enumerar tanto
e me cansa fazer tão pouco

e começo a segunda-feira
disparando sem fôlego
na largada dos dias úteis

domingo, 22 de junho de 2008

Leito vazio


[de uma poeta conterrânea, Troiana]








Eis o que sou:
Poeta sem poesia
Essa, sem versos
Que rumo inverso
Que me sobrou

Olha o que sou:
Músico sem música
Essa sem nota
O que me denota
Culpa de quem me criou

Bem, o que sou?
Escritor sem página
Essa, sem tinta
Mesmo que sinta
Já se cansou

Não sou aquela folha em branco
Sou o vazio do rio de teu pranto
Sou de tua liberdade, a prisão
Porque és aquela canção
Que cantar não posso
O poema e o remorso
Que não o declamarão
A eterna escravidão
Dos meus amores
És dos sabores
Que nunca terei

Porque sou os passos que nos aproximam
E és a distância da rotina
Que nos separa

Sentou-se no leito vazio
E fez correr esse rio
Pro mar da sua infelicidade
Sucumbindo a verdade
Nasce, como o verde,
Entre as pedras
A saudade, entre as trevas,
Do meu peito

Brota... daninha
E morre sozinha
No jardim secreto de meu coração

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Nova seção

Abro, com este tópico, uma nova seção no blog, nominada 'De outras e outros'. É onde desejo publicar textos de outras pessoas, contemporâneas.

Começo com verso[s] sem título.



Seja o que for
Embora o amanhã se construa hoje
E o futuro não esteja mais tão longe como antes
Há coisas para as quais precisamos nos preparar

O dia da chegada
O dia da partida
Não podem se perder em trilhas
Para qualquer lugar

O nome do seu filho
A página virada
Não bastam trinta minutos
Para se pensar

O traje para uma festa
O traje pra todos os dias
Que importância isso teria
Se não fosse o teu medo a te acorrentar?

Tudo o que ocorre foi planejado
Tudo o que sabemos não tem explicação
Perdi todos os mapas enquanto procurava
Sua canção

Seja o que for
Amanhã será melhor, eu sei
Roupas lavadas, perfume no corpo
Flores do campo e cachorros

Eu espero não ficar sempre aqui
Mas você sempre saberá onde me encontrar.



[Renata Luiz dos Santos]

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sobre o Artur, que palavras posso usar?

Artur da Távola despediu-se deste mundo já faz uns dias, e só hoje tenho condições de articular qualquer coisa sobre ele. É que fiquei órfã. Ficamos. Mesmo os que nem o conheciam.

Artur entrou em minhas leituras há oito anos, quando, por sugestão dum amigo, catei quatro de suas seleções de crônicas num sebo. Todas publicadas no fim dos anos setenta. Nasceram comigo, com o pessoal da minha geração. A diferença é que eu vou morrer, assim como meus contemporâneos, nossos ascendentes e descendentes. Assim como o próprio Artur. Mas, expressões claras dum ser com uma sensibilidade e agudeza de espírito incomuns, suas crônicas permanecem, e sempre muito atuais. É um conforto. É um alívio. É uma obviedade. Eu sabia disso desde quando o conheci.

As suas crônicas nada têm de raso ou efêmero. Quem as conhece, sabe do que falo:ninguém passa pelas palavras dele com coragem para continuar sendo a mesma pessoa. Todos os adjetivos que eu, tolamente, me arriscasse escolher para caracterizá-lo, ah, que ingênua, não bastariam. Eu não encontraria as expressões que dissessem em meu nome o meu sentimento traduzido.

Para os aventureiros interessados, sugiro especialmente ‘Cada um no meu lugar’, sobre o qual o próprio autor escreveu: “A pessoa, quando fala deste título, diz ‘Cada um no Seu lugar’ e não ‘Cada um no Meu Lugar. Isso mostra como até inconscientemente somos reacionários. É a tendência a rechaçar o novo e permanecer até com os sons habituais. Cada um no ‘Meu’ Lugar é exatamente a antítese de uma sociedade que quer cada um no Seu lugar, impedindo o crescimento e a democratização interna dela, sociedade, e, delas, pessoas”.

Recordando o meu feliz garimpo no sebo carioca, tenho aí o melhor exemplo de diferença entre preço e valor. Cada um dos quatro livros custou três reais. E eles passaram a constituir a minha bíblia. A minha bíblia custou doze reais. E, no entanto, não tem preço. São livros para serem devorados com a urgência possível.

Desde então, passei cinco anos ensaiando mentalmente o e-mail que eu enviaria ao Sr. Távola para contar-lhe exatamente que ele era o autor da minha bíblia particular. O problema é que eu nunca era capaz das palavras que ele merecia receber. Até que um dia eu fui. Ou fui cara-de-pau o suficiente para achar que sim.

Vinte dias depois chegou-me a resposta, de uma gentileza ímpar, sendo que um trecho era esse: “A meu convite, venha conhecer em versão digital o meu primeiro e-livro, com crônicas sobre um Rio não óbvio, às vezes escondido. Rio, um olhar de amor”. E baixando o livro a partir deste link li novas delícias, agora duma safra bem recente. E pensar que se tivesse demorado oito anos, ao invés de cinco, pra me encorajar... Ai!

Para encerrar, e nem de longe encerro o que tenho a dizer/pensar/sentir sobre ele, valho-me de sua crônica “Há sempre uma perda em cada encontro”. É onde ele diz que felicidade tem mais a ver com “tristeza feliz” que com alegria. Porque “tristeza feliz é a que só surge depois dos encontros verdadeiros, tão raros. [...] Quem se alegra demais, se distancia da felicidade. Felicidade está mais próxima da paz que da alegria; do silêncio que da festa; do encontro que do debate. [...] Felicidade está perto da tristeza, porque a certeza da perda se instala a cada vez que estamos felizes. [...] Há sempre uma despedida em cada alegria. Há sempre um ‘e depois?’ após cada felicidade. Há sempre uma saudade na hora de cada encontro. Antecipada”.

E eu, que não estou nada alegre, mas imensamente feliz, triste-feliz, pelo encontro que tenho há anos com o melhor do que seja Artur (com que palavras eu poderia expressar o tal não-sei-quê inominável que a arte dele provoca em mim, e de modo que já servisse de agradecimento?), eu agora peço licença. Vou ler a bíblia.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Assombros no calendário

Aconteceu hoje cedo. Foi um soco na memória.

Eu estava no meu trabalho elaborando uma certidão. Finalizando o documento, constavam local e data, Laguna, seis de março de 2008. Foi aí que eu paralisei, com cara de demência. Eu não esperava um susto daqueles.

Como assim, seis de março, se ontem mesmo foi réveillon? Eu não entendi. Até agora eu ainda não entendi. Tenho certeza que trinta e um de dezembro foi ontem, eu estava em Copacabana rodeada de pessoas que amo muito, o céu cravejado de luz, a noite era dia, os fogos de artifícios mais irreais que já vi, uma queima de vinte e três minutos, nem se sabia pra onde olhar, respirava-se aquele ar de 'seremos ainda mais felizes no ano novo'. Foi ontem, eu juro pela alma de Nelson Rodrigues.

O que mais me apavora é que a vida está passando rápido demais, demais, pra mim, que tento não perder nenhuma boa chance de nada, por menor que seja. Que levo a sério o carpe diem. Que não sofro de chiliques. Que faço artesanato com sucata. Que sinto a respiração das plantas. Que como comida de três dias. Que vivo me alongando, forçando o limite dos músculos, dos tendões, da dor, pra melhorar a consciência corporal. Que arrisco. Que sou compulsiva por garimpar sebos e compro dezenas de livros por vez. Que já dormi numa cama onde embaixo dormia solta uma pittbul de quem eu não era íntima. Que fui de Araranguá a Recife de ônibus, colecionando histórias memoráveis. Que já entrei no carro errado, na festa errada. Que pari aos quinze anos. Que tenho amigos até em Bangladesh. Que reciclo papel. Que inspiro profundamente, piso a terra, pulso com o mundo. Que ainda mantenho correspondência postal. Que faço horta. Que quero fazer tudo ao mesmo tempo, e me perco no relógio, no calendário, mas cheguei ao ponto de aceitar e respeitar meu ritmo próprio. Que não tenho o menor problema em rachar de rir ou chorar em público. Pra mim, que me desespero porque o Machado tinha razão, 'Matamos o tempo; o tempo nos enterra', e eu desejo fazer tanta infinidade de coisas antes da terra me chegar por cima... Pra mim, que num contexto que reputo válido tento efetivamente viver, o tempo está voando mais, muito mais do que posso acompanhar até mentalmente.

Então fico tentando imaginar como é a percepção da passagem do tempo para as outras pessoas. Especialmente para as que têm chiliques demais, preconceitos demais, ressalvas demais. Pra quem vive, nos versos de Cazuza, '[...]Remoendo pequenos problemas/Querendo sempre aquilo que não têm/Pra quem vê a luz/Mas não ilumina suas minicertezas/Vive contando dinheiro/E não muda quando é lua cheia[...]'.

E nos vinte minutos que levei pra escrever este pequeno rol de assombramentos, sei lá que dia já deve ser...

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

No centro de BH


O que tem mais força, a matéria viva ou a matéria bruta? E é questão de força? De resistência? De quê?

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Escavando tesouros

Um breve comentário - em torno de dois exemplos - sobre a tendência humana a precisar da ajuda alheia para valorizar as próprias coisas.

Tem-me ocorrido seguidamente: desde que mudei para outra cidade, as pessoas de lá me fazem a invariável pergunta: ‘Vieste por que, se não tens família e nem conhecidos aqui?’. E a minha resposta é sempre a mesma: ‘Por amor. Conheci Laguna e caí de amores. Não só pelas praias, paisagens, mas mais ainda pelo contexto histórico, pela memória de Anita, pela nostalgia, pela magia desse ar, desse clima, por tudo!’. E ninguém disfarça, em maior ou menor grau, uma reação de surpresa.

É como se não se dessem conta, sozinhos, de que sua cidade justifica a atitude. E isso que não sou ingênua de pensar que se trata dum lugar perfeito, o paraíso, a Pasárgada. De qualquer forma, arrisco um palpite: talvez porque o cotidiano lhes oferece aquele cenário todo de uma forma automática, natural, gratuita, em geral não se dão conta da riqueza que têm, em vários sentidos. E eu não afrouxo no tom de voz, mantenho firme e claro um amor pela minha cidade adotiva, sem renegar, contudo, o que tenho pela minha terra natal e pelos amigos que nela vivem.

Num outro exemplo, é como se andasse alguém pelo meu jardim e fizesse uma festa quando visse uma flor, ou uma fruta, ou uma árvore, ou mesmo uma pedra, algo especial cujo valor até então passasse despercebido por mim. E que, só a partir dessa intervenção alheia, certamente se transformaria no tesouro do meu jardim.


[Na imagem, um exemplo possível da nostalgia de que falo, logo ali, no entardecer lagunense.]

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Triunfal

Cheguei em Laguna, minha nova cidade, assim: desembarquei na rodoviária às 4 da matina e fui de táxi até o hotel de libaneses onde tinha feito reserva para 17 dias. Havia ligado no dia anterior para avisar o horário em que chegaria, e me informaram que não havia problemas em chegar de madrugada. No entanto, às 4 lá estava eu diante do hotel fechado e escuro. Não atenderam a campainha. Liguei e, finalmente, uma alma veio me atender. Era um dos donos, e disse que o hotel estava lotado. Eu, a mais ingênua das lagunenses adotivas, lembrei-lhe que havia feito reserva, e pago adiantado. Mas ele, constrangido, rindo sem jeito, disse-me no seu português sofrível que ‘não, lotou mesmo... a senhora aguarda aqui na recepção, que às 6 o meu pessoal vai embora e sobra quarto’. Não compreendi quem era o ‘seu pessoal’, mas, sem muita opção, tentei esticar-me num sofá e esperar que chegasse logo a luz do dia. Não foi fácil, porque vira-e-mexe chegava alguém, ligavam para o padeiro, o leiteiro, o cozinheiro, falavam de reservas e blablablás inerentes a hotéis. E eis que chega o horário que eu esperava, e desce um povo sem fim falando libanês, chorando, bradando e se despedindo (imagino). Eram abraços maternais desconsolados, pois uns ficavam e outros partiam... Parecia mais uma despedida italiana, com todas as gesticulações de direito. E eu, que só queria dormir numa cama decente, fiquei ali tentando fingir naturalidade em meio a um povo desconhecido, testemunhando constrangida aquela cena cheia de sentimentalismo libanês (universal?!). Não bastasse, num repente eu me viro para conferir a minha bagagem, uma única mala, mas que pesa uns duzentos quilos. Não estava onde eu a havia deixado, logo ali ao lado do sofá. Perguntei se a haviam guardado, e descobri que não, que o libanês que me atendera estava levando-a para o carro, confundida com as bagagens dos seus familiares. Por questão de minutos, agora a minha mala estaria no Líbano. Isso se tivessem pago a taxa de excesso de peso no embarque, afinal duzentos quilos são duzentos quilos. O meu único ponto positivo nesse episódio do sofazão é que o libanês resolveu me compensar com uma diária a mais. Se não deu pra perceber, digo com todas as letras que estou num hotel que parece aqueles de filmes de sessão da tarde, ‘onde tudo pode acontecer’. Mas não precisam ter pena de mim: 17 dias passam voando, e, além do mais, na verdade eu até me divirto com certos incidentes supostamente odiáveis. Não é porque toda a minha bagagem quase foi parar no Líbano que eu vou deixar de encerrar essa postagem com o desejo sincero de sempre: Carpe diem.