sábado, 14 de outubro de 2017

Grandes encontros

É dia 14 de outubro, e, como meus planos lunáticos estão dando certo, estamos em Teresina, num calor de fazer sulista infartar só de olhar pra fora do hotel. Minha armadilha já lançada pra que meu amigo Leandro seja pego de surpresa em sua casa, nesse dia que é o do seu aniversário, no bairro Vermelha Sul.
V i n t e a n o s e s e i s m e s e s. É o tempo que passou desde o início da nossa amizade postal, em abril de 1996. Quando a expressão “amizade virtual” começou a se concretizar entre as pessoas do meu dia a dia, eu já era PhD em amizades à distância, mas pelo correio convencional. Leo é o último dos meus grandes “amigos de carta” que me falta conhecer pessoalmente, pelo menos dentre os mais chegados. Ele não faz ideia que planejei esses meus trinta dias de férias em torno do compromisso número um que é aparecer de surpresa na sua porta, cantando parabéns com um bolo na mão, no dia do seu aniversário.
Quando, meses antes, contei empolgadíssima a ideia pro querido & parceiro de viagens, ele fez uma cara de desgosto e se limitou a dizer: “tu sabe que esse tipo de mico nunca dá certo, né?”, e eu respondi que “eu sei, mas deixa eu fazer uma dessas uma vez na vida!”
Aproveitando ter registrado no facebook a passagem relâmpago, um dia antes, pelo Museu do Amanhã, com a amiga Marcinha (“a menor gigante que conheço”), ligo pro Leo, já no hotel em Teresina, pra despistar, lhe dando os parabéns de sempre, e digo que estamos no Rio, viu a foto? Tá um calor aqui no Rio, sabe, e ele me conta que "lá" também, e que na manhã seguinte, sábado, vai ter a festa dele na casa da irmã e coisa e tal, com piscina e tudo. Ebaaaaa!, se alegra em segredo a parte do meu cérebro que ainda não derreteu.
Eu vigiando seus passos pelo zap, lá vamos nós atrás dum bolo de aniversário. Encontramos um supermercado, tem um bolo lindo, mas primeiro, pelamoooooordedeus, um tubo grande de protetor solar fator mil, porque o fator trinta que trouxe do sul não dá nem pro cheiro. Isso porque em Teresina não arriscamos uma quadra sem táxi. O que em qualquer outro lugar sempre nos parece frescura, aqui é sobrevivência pura.
Vinte anos e seis meses. Um amigo que só conheço por cartas. E telefone, e-mail, fotos, presentes, etc. O Leo é a pessoa que mais me serve de exemplo quando lembro que quem quer estar na vida de alguém, mesmo longe, consegue. Ele participa ativamente da minha, há mais de vinte anos. Até doce de caju feito pela dona Raimunda, sua mãe, ele faz chegar em mim, em nós, em Laguna, no sul brasileiro que ele ainda não conhece, ou melhor, só por carta. Por enquanto.
Mas voltando a Teresina antes que o sol de trocentos graus derreta o bolo. 



Instruções ao querido pra registrar o encontro. O taxista procura a casa, sei as coordenadas de cabeça, vinte anos e seis meses endereçando os envelopes pro mesmo lugar.
Mando um zap jogando um verde, ele diz que tá em casa, jogando game com seu sobrinho. Peço que não saia porque lhe mandarei uma surpresinha por um motoboy. Já na chegada o flagramos tentando pegar um melhor sinal de internet em frente a sua casa. A sobrinha Isabela está em redor, sempre.
FELIZ ANIVERSÁRIO!, desejamos do jeito mais realizável que conseguimos. Hoje, os 3.425 quilômetros que separam nossas casas são apenas números: nada atrapalham nesse abraço improvável mas muito verdadeiro. Na hora tenho vontade de mandar pro face nosso grande troféu, o souvenir máximo desse encontro: o vídeo de 33 segundos que registra nossa chegada na escaldante Rua Valdivino Tito. Mas os amigos nem acreditariam me vendo postar algo em tempo real, capaz de pensarem que é vírus. Depois de duas décadas salivando, o bolo é acompanhado com cajuína bem gelada, sim, senhor :D



A noite ainda nos presenteia com um outro grande encontro: o n. 4 de Elba + Alceu + Geraldo, no Teresina Hall. Leo não pode ir conosco, pois vai trabalhar nessa noite. Mas ele, Isabela e tia Raimunda vão conosco ao shopping comprar os ingressos. 





E amanhã tamos lá na festa na casa da irmã, pensa que eu esqueci, é, seu Leo?  
(À noite desse dia transbordante, o show começa com uma vida de atraso. Guardo até quase no fim um fiozinho de bateria da câmera, confiando no repertório, digo, esperando pela morena tropicana que há de vir, ai, ai, oi, oi, eu mega piegas entregue à felicidade de um dia realizado, e ela vem e arrasa, digo, o Alceu nunca me decepciona).
Dia 14 de outubro de 2016. Um dia que pra mim não é uma data apenas: é uma celebração sem prazo de validade. De grandes encontros que minha memória de elefante nunca há de me deixar esquecer.
Tá fazendo um ano. Na época, no ato, vou contando a trama no varejo, aos amigos do itinerário. Mas a distância é grande: pra pegar carona e registrar no atacado, é agora ou nunca mais.


domingo, 27 de agosto de 2017

No dia em que descobri as funções do sambaqui

(Publicado primeiramente aqui.)



É primavera de 2014
eu nas pesquisas pruma arte visual
sobre aquela maniazinha
que se carrega pela vida:
querer deixar no mundo um nada que seja
uma coisinha que nos imortalize
e pra isso serve um poema,
uma piada,
uma história,
uma tela,
um biquinho de crochê
um filho
uma foto
uma boneca de pano
a dedicatória escrita num livro
uma pipa caseira
uma casinha na árvore
um souvenir de Itavuvu da Serra
uma receita especial de nhoque
pra usar nos dias vinte nove

serve até um mantra
e, na falta, serve um
bilhetinho já lido
de biscoito da sorte
(...)
escolho representar na tela
uns padrões de pintura rupestre
com a arte da pré-história mostrando
essa mania de deixar pegadas
não é coisa só de agora
(...)
nisso é que acontece
acidentalmente
cruzando google com
livros de história
a minha grande descoberta desse dia:
eu até então pensando que sambaqui
era só um monte de concha antiga
descubro que nos antigamentes
ele era espaço multiuso,
monumento, mirante, cemitério,
oficina metalúrgica e lítica
além do calcário para a construção civil
comparado em livros e estudos
às esfinges e pirâmides do Egito!
será que eles sabiam que essa concharada
tinha chance de chegar ao nosso tempo?
só sei que hoje, quando ando na praia
e vejo qualquer cacareco de marisco,
com um cantinho do olho entre
o astigmatismo e a agonia
eu olho pra trás, olho pra frente
enxergo passado, enxergo futuro
tudo assim meio bagunçado
bem aqui no meu presente.



(detalhe da tela Enigma do Esquecimento, 2014)



Fenomenologias 'lagunensis'

(Publicado primeiramente aqui.)



Eu mesma já vi que Laguna tem umas ruas mágicas.
É coisa que se repete, não é fenômeno raro.
Nunca é no point, na cena, nunca é onde tá bombando de gente.
É igual leite fervendo, é sempre quando ninguém tá olhando.
(Ou, de qualquer forma, ninguém sabe, ninguém viu. Ouviu?, ninguém viu!)
É incrivelmente real: a materialização de objetos mega deslocados ao alcance das paisagens mais feras da cidade.
Não falo das árvores que lotam a praia depois das enchentes nos rios: falo apenas da chocante invasão de artefatos humanos. Já vi televisão, em pleno verão, tomando banho de sol. Até que ela não é boba, super lugar. Deve ter chegado de madrugada: ninguém sabe, ninguém viu. E as de tubo, senhorinhas tevês, andam brotando por tudo que é terreno baldio, inclusive, é claro, pertinho da praia, com seus super metais pesados loucos pra espalhar seu amor pelo mundo. Artefatos que adoram uma beira-mar, coisa mais linda de se ver. Deve ser a convivência com o povo caiçara, pegam uma paixão pela orla, depois já nem conseguem ir embora.
Uma vez vi um computador tão diferente, escultural, arredondado, retorcido, pós-moderno, pós-fogueira, exclusivíssimo, puro luxo, fenomenal. 
Já vi um montão de cadeiras e carteiras escolares, com selo de patrimônio e tudo, mofando num galpão institucional abandonado. Acho que gazearam aula e depois se esqueceram do caminho da roça, digo, da escola.
É cada uma que eu vejo em Laguna. 
Já vi obra de arte metade pra fora metade pra dentro da cesta de lixo. Deve ter tropeçado enquanto passeava distraída na calçada, coitada, caiu e ficou, ninguém nem pra ajudá-la, entalada como uma tia velha e bunduda caída de bunda numa bacia bem funda.
Já vi, essa ninguém vai acreditar, e nem deveria: aliás não fui eu que vi, foi a minha vizinha: em plena lixeira do condomínio, pois não é que surgiram duas irmãs gatinhas recém-nascidas? Juro, entre sacos poeirentos, sacolas fedidas, cacos de vidro e meia dúzia de caraminholas. Lili e Mimi são os nomes delas, que hoje vivem como rainhas. Moram de frente pra minha porta, juro que não é história da carochinha.
Já vi tanto sofá refestelado no meio do mato… Olhando pra onde? É claro que é pro nascer do sol ali no fundo do mar. Eita mobília contemplativa, é coisa de se estudar.
Mas olha que coisa fantástica, vejo toalha de crochê nascendo na grama em calçadas, becos, terrenos baldios… Ninguém seria doente de jogar fora as toalhinhas de crochê da vó… É claro que se elas estão se espalhando por aí, só pode ser porque os agrocientistas inventaram um jeito de as semear. Pé de crochê, essa é tão fabulosa que nem minha amiga Velhinha de Taubaté iria acreditar.
Se já é estranho esse monte de tralha deslocada em terra firme, imagina a bizarrice, se fosse verdade, a tal Grande Ilha de Lixo no Pacífico. Maior que Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo juntos. Eu, hein? Essa notícia sempre me pareceu fantasiosa demais. 
Mas só até semana passada, quando avistei, numa dessas ruas lagunenses de quina com a beira-mar, uma nova espécime rara. Um peixe que anda em bando pelo meio da estrada! Talvez tenha sofrido alguma séria mutação e por isso não queira mais saber de mar, muito menos de rio. Rio consternada de vê-los ali anoréxicos, tão magrinhos, pele e osso, digo, couro e espinho. Ou será que vieram no vácuo das garrafas pet da Ilha de Lixo do Pacífico? Baita travessia… Ainda bem que vieram em bando, assim é melhor pra defenderem seu espaço na água. Vai ver quando chegaram na costa pegaram impulso de novo, se arremessaram pra fora da linha da maré alta… Goooool? Será? Pra foooora, gritaria um locutor bizarro que acompanhasse atento e de ponta a ponta a longa trajetória, do Pacífico a Laguna, ou, melhor, do começo ao fim da história. Pensando bem, não é má a ideia desse bando de dar uma banda do lado de fora. Aqui tem tevê, tem sol, tem sofá, tem gente civilizada pra conhecer, e, procurando bem, no meio dos restos tem de tudo que se possa precisar. Diz que de fora se vê melhor, e se embaixo d’água tá ruim de espaço, aqui no camarote tá show pro cardume magrelo contemplar a limpeza, a lindeza, a riqueza que tem nesse mar.


Textos semanais n'O Correio



Inaugurando um espaço semanal para textos meus, no jornal O Correio, do Paulo. Todas as quartas-feiras, impresso e na internet. Na página 5 desta edição: "A Laguna o que me faz".


domingo, 23 de julho de 2017

ENVIANDO MEMÓRIAS PARA MAIO DE 2057

(Publicado primeiramente aqui (parte 1) e aqui (parte 2).


Quase fim do expediente forense, dia tal de abril de 2017. No próximo 9 de maio nossa Comarca de Laguna completará 160 anos de instalação, e acabo de ser convocada pelo doutor Paulo diretor do foro pra compor a comissão organizadora das festividades. Que honra! Cinco minutos depois, na primeira reunião, ele pede ideias à equipe recém-formada. Algumas se cruzam. Eu sugiro uma exposição, sei que tem uma coisarada linda doada por Laguna no Museu do Judiciário Catarinense, na sede do TJ. Relógio, urnas, processos antiquíssimos super bem cuidados, já vi pessoalmente a Jaqueline apresentando, doutor. Ele e os colegas de comissão gostam da ideia. Ah, também posso escrever uma crônica sobre a data. Amo quando falam em homenagear os servidores mais antigos, na ativa é a Rosane, e dos aposentados os colegas que são daqui começam a lembrar nomes que desconheço. De início Jucenara cita dona Betina, o Walmor que não é o que é pai de sete filhos fala em José Fonseca, e eu me disponho a entrevistá-los. Memórias, eis uma palavra que venero, ainda mais no plural. Dona Betina está com mais de oitenta anos, enxerga pouco e mora quase vizinha do fórum. Ansiedade minha a de encontrá-la. O Walmor vai comigo e nos apresenta, marcamos a entrevista. Dali a dois dias, enquanto do lado de fora o Brasil é uma sucessão de bizarrices principalmente políticas escorrendo pegajosas e nonsenses pela tevê, na sala de dona Betina está uma calmaria que dá gosto enquanto vou anotando os apontamentos de sua fala, Siiim, lembra muito bem, trabalhou ali sempre na mesma sede de hoje, de 1979 a 2004 (“Não tem problema se eu errar alguma coisa, né?”), várias salas tinham piso de madeira, gostava de faxinar o salão do júri aos sábados, sozinha, com bastante capricho, os cartórios particulares eram no fórum também, tem uma gratidão muito especial pela doutora Rejane, se lembra com carinho de muita gente, doutor Erwin, doutor Renato, doutor Maurício, Alceu, Valmir oficial de justiça, Maria Laura, doutor Aurino, José Fonseca, doutor Sidney Bandarra, Adelir, Abelardo, Elisa, e penso, seja o que Deus quiser se sair errado um ou outro nome do povo todo que habita essas suas lembranças.
Uma fotinho no fim, com seus santinhos por detrás. Eu já de saída, conto pra sua filha Nilza que descobrimos um parentesco distantemente enviesado: minha avó paterna era dos de Bem lá da Madre, sabe; a sogra da dona Betina também era. O Museu do Judiciário super nos ajuda com material e ideias pontuais para a expo (vida longa aos bons museus do mundo!): por exemplo, a Jaqueline me sugere incluir o registro de nascimento tardio da nossa conterrânea Anita. O processo está no Arquivo Central, o Rodolfo da primeira cível agiliza o pedido pra nós. Dias depois, quando no meio da tarde da sexta-feira dia cinco cai nosso sistema SAJ, aproveito pra fazer o levantamento dos restos mortais dos livros de sentença mais antigos daqui do cartório criminal, alguns quase centenários. Eles acabarão não entrando nessa expo, mas quero mostrá-los ao Sandro quando vier de Floripa trazendo os empréstimos do Museu.
O Diego meu chefe registra pra mim essa arqueologia cartorária eventual, que eu amo mais a cada página impregnada de fungo e memórias que leio. Na sequência ficamos também sem eletricidade, na Laguna inteira, e estou no arquivo da primeira cível com a lanterna do celular ativada, garimpando, quando fico sabendo que o processo da Anita chegou. Euforia é pouco.
Enquanto isso, em Cape Town o Ramon me envia cartões-postais das suas longínquas miniférias africanas, que só me chegarão bem depois do retorno dele próprio, mas ele, que além de secretário do foro também compõe a comissão, ainda chega a tempo de fazer muito pelo aniversário da Comarca.
Graças à ajuda da Maria Cláudia consigo a entrevista na casa do nonagenário senhor José Fonseca, na presença da filha Eveline e da esposa Mírian, super queridas e prestativas. Tudo muito rápido pra incomodar o menos possível os tratos com a saúde do entrevistado. “Sim... Recorda o trabalho no fórum... De 1951 a 1984... Trabalhou inclusive com sua irmã Elisa... Tem ótimas lembranças de muita gente... Vinícius Duarte... Neri Demétrio... Carlinhos Horn... Doutor Erwin... Perguntado, diz que conheceu Arcângelo Bianchini, o que dá nome à rua onde o fórum se situa. Preciso saber mais sobre o Arcângelo em razão de questões incidentais de reuniões da comissão. Recorro ao amigo historiador Ronaldo David, de Criciúma, e recebo dados preciosos sobre esse imigrante italiano visionário e empreendedor que tanto fez pela região sul do estado. Já tenho as duas entrevistas mas a crônica vai ficando pro final. Aliás pra não sei quando, porque tudo nesse mês é mais urgente. Cada coisa vai encontrando seu melhor jeito de acontecer. Conseguimos com a Fundação Lagunense de Cultura o empréstimo de painéis (elucidativos da Justiça nos antigamentes da cidade) e outras peças do Museu Anita Garibaldi. Ivonete e Rosane deixam tudo brilhando antes de incluí-los na exposição. Conseguimos apoio excelente da Divisão de Artes Gráficas da nossa instituição TJSC, tudo tratado por telefone e email e chegando por correio em dias de ansiedade e correria. Conseguimos fotografias antigas das várias sedes do foro da Comarca, graças ao acervo do Foto Bacha, do Carlos Marega e do Carlinhos Horn. “O dia nove”, é como nós da comissão o referimos. O dia nove é uma entidade com muita vida própria. Movimentadíssimo com apresentação da centenária Banda Carlos Gomes, exposição, visita de autoridades e de grande público, discursos emocionados, hasteamento de bandeiras, entonação de hinos, mostra de redações de estudantes municipais, sessão especial das câmaras de vereadores de Laguna e Pescaria Brava, cobertura jornalística do programa Justiça Legal e Unisul TV, ação de graças com o padre Lenoir que começa lembrando que tudo se resume na palavra gratidão, Joãozinho Rodrigues cantando lindamente em italiano, parabéns pra você e bolo de aniversário com Rosane e doutor Renato soprando juntos simbolicamente as velinhas de 160 anos da Comarca, entrega de placas de homenagens a autoridades, servidores aposentados ou na ativa e outros, etc. É um dia infinito, mas mesmo assim ele não resume a longa movimentação excepcional que embalará a Comarca durante todo o mês.
Ainda teremos visitação de escolas, apresentação de coral e banda da Fundação Bradesco, distribuição de mudas de árvores frutíferas, audiência simulada educativa para o público infantojuvenil, sessão especial de julgamento da Quarta Turma de Recursos de Criciúma, que ao final do dia nos presenteia com uma muda de Árvore da Felicidade, amém.
Numa das reuniões iniciais, meu chefe doutor Renato, juiz com maior tempo de judicância na história de Laguna, havia mencionado um crucifixo de parede doado pela Comarca à Paróquia anos atrás, e, a pedido do doutor Paulo, vou com Walmor e Ingrid Leonardo atrás de Lurdinha Silva, pessoa incumbida de nos dar acesso à Igreja São Francisco de Assis, na Comunidade do Mato Alto, onde, pela manhã, em conversa com o padre, o Walmor descobrira ser o paradeiro do tal crucifixo, e pra não deixar dúvidas do tiro certeiro, as lentes da Ingrid registram, do alto duma escada improvisada, até a plaquinha de metal afixada ao pé do grande crucifixo no topo do altar principal: “Tribunal do Jury de Laguna – Maio de 1929”.
A Lurdinha se surpreende, sempre limpam ali sem reparar na inscrição. Ela nos garante que visitará o fórum pra ver tudo, e vai mesmo.
Dias depois, a Maria do Carmo passa pela exposição enquanto estou também no alto duma escada acrescentando as fotos do crucifixo e entorno recém-chegadas da Gráfica, e me ajuda de longe indicando se e onde preciso endireitar as imagens. Vou sempre tentando pensar numa data oportuna pra publicar a futura crônica, que consigo pelo menos começar na manhã do dia nove, entre a correria intraduzível da montagem da exposição e dos demais preparativos da data, com Marcelo se virando em cinco pra ajudar a pendurar quadros, erguer expositores, prender balões, faixas, redações, enquanto a Cida me ajuda a preparar um móvel da sala da Regina assessora pra ser o suporte do processo da Anita. Fico sabendo da ideia da sua xará doutora Regina, integrante da comissão, com execução do seu esposo doutor Vilson: uma CÁPSULA DO TEMPO! Genial, ge-ni-al, eu falo.
Pra guardar os souvenirs desse mês, pra ser aberta somente nos 200 anos da Comarca. Mediante portaria determinando que se convide, pro evento de abertura, os membros desta comissão que formamos, ou aqueles que daqui quarenta anos nos representem. Preciso avisar o Hiago, nunca se sabe. Por falar nisso, terminando maio, pelo whatsapp a Maria Cláudia me informa sem vontade nenhuma: o senhor José Fonseca, sabe, que tu entrevistou... Foi-se... Voar, eu penso. Obrigada por ter participado e se dedicado tanto. E agora, senhor José? Que o seu voo merecido seja leve, e lindo, e sabedor da minha e nossa imensa gratidão. Assim que fico sabendo da cápsula, reforço pros colegas assinarem a lista de presença da exposição, e o Sandro quando volta pra recolher os empréstimos é o penúltimo a registrar seu nome.
Tanto a mais acontece no meio desse maio, tantos outros e outras participam, ajudam, visitam, enriquecem um mês de muito trabalho extra mas pra lá de especial. No fim, pra tratar de uma cerimônia sui generis agendada com quarenta anos de antecedência, até que minha crônica saiu bem adiantada.

domingo, 9 de julho de 2017

Um três de julho pra chamar de muito meu

Paraty, 2016. Último dia-domingo de FLIP. Foguete, percussionista-aniversariante vai cedo de bike pegar o bus pro Rio, é o primeiro de nós 5 a se despedir na pousada do japonês. Espírito de guri, na identidade 66.
Neto é o próximo, pra aproveitar o fim do dia em Sampa. "Férias de uma semana, minha cara, cada hora vale ouro”. A Laura vai de caroneira. Antes vamos juntos pela última vez no centro histórico arrematar o que ainda tá rolando nessa edição que homenageia Ana Cristina César, a Ana C.
O acaso de falar da minha fixação pelo Luis Fernando Veríssimo com o Michel Terra, da Folha, que nos atende super atencioso, o faz revelar que ancestrais sul-rio-grandenses seus inspiraram personagens consagrados do Érico Veríssimo, pai daquele um que amo de paixão.
E logo somos só eu e Vanildo na chepa da FLIP. Me orgulho pela nossa bagagem estar pronta e guardada no quarto da pousada desde nosso check out ao meio-dia, cortesia que o recepcionista nos oferecera na noite anterior. Só embarcaremos às 22:50h, já tinha escolhido o último horário pra passar esse dia sem correria. No almoço, compartilhando a mesa num restaurante lotado com o professor de redação Paulo Jorge, da Bahia, emendamos uma ensolarada conversa sem fim.
É um raro dia em que estamos com tudo em dia, e claramente nem sei como se age num dia assim. Como tinha presenteado o Neto no último instante com um Waly Salomão fininho recém-comprado pro Vanildo, volto sorrateira na livraria da FLIP. Já na fila do caixa, algo inevitável acontece: uma fotobiografia e-nor-me da Clarice se apaixona por mim.
Foi-se a mala perfeita, sou passional e resignada: sei disfarçar a tonelada extra na bolsa que arrastarei até 22:50h, já que eu tinha jurado-juradinho não agregar mais nenhum peso ou volume na bagagem. O fim de tarde no centro histórico é eletrizado pela passagem (pra mim surpresa) do Cinebloco.
E uma sugestão da Renata eu tinha reservado pra essa última noite: o filme-documentário “Para sempre teu... Caio F”, da Paula Dip, no SESC, às 20h. Com previsão de encerrar às 21:30h, na prática ele termina às 21:40h. Tudo bem, 70 minutos pro embarque. Me dá um medo feliz de pensar que no meio de tanta programação simultânea eu poderia ter perdido essa. Rê, valeu muito a indicação, é só o que penso. Enquanto descemos do sótão-cinema pro centro histórico vazio, espio as caras ao meu redor e confirmo aliviada que há mais chorões entre os comparsas de última sessão. Já na rua, enquanto vou tentando driblar o calçamento pé de moleque, percebo minha confusão mental: ainda tô chorando por dentro, mas já não dá tempo de parar, e fora isso tô com a bexiga explodindo.
Entramos no primeiro táxi, combinamos preço, e no caminho já vamos adiantando se ele pode voltar às 22:30. Ele diz que não vale a pena, até dez minutos pode esperar na pousada mesmo. Mas... Pausa pra um milênio de desespero. "Me segura qu'eu vou dar um troço" é o nome do livrinho do Waly que comprei duas vezes no mesmo dia. Premonição? Na hora não penso em nada. Encontramos a pousada fe-cha-da, às escuras, o portão trancado, ninguém na portaria nem atendendo nenhum dos telefones. Simplesmente n-i-n-g-u-é-m. No meu nervosismo não me atino nem pra telefonar, é o taxista quem liga. Nós três no escuro chamamos em coro pelo japonês. Com o tempo apertando e sem ninguém na vizinhança, sugiro um "plano infalível" consistente em pedir uma escada no bar em frente, pular o portão, arrancar a porta do quarto onde ficaram as malas, registrar um B.O. com o testemunho do deu Dilson taxista, depois em casa ligar pro japonês, explicar tudo e repor o valor do conserto. "Tu tá doida?", Vanildo me diz, mas vai até o bar, e volta com o endereço do dono da pousada. Nisso recordo uma ligação perdida no celular, com código do Rio. Seria pra avisar que fechariam? Peço ao seu Dilson que retorne pra mim, meu código é do sul e tô histérica nervosa demais. Nada, é uma amiga carioca que fica uma arara ao saber que não reconheci seu número. Bota asa nesse carro, seu Dilson, pelamooordedeus! Achamos fácil a casa, ali pertinho, e a nora do japonês volta conosco. Lá em frente outra vez, ela liga pro sogro que atende de primeira, estava lá dormindo o tempo todo. Seu Maeda, nunca lhe disse mas sempre o admirei pelas respostas aos meus verborrágicos e-mails anuais de reserva pra FLIP, os seus tão haicais na incrível terceira pessoa jurídica do pretérito plural. O senhor agora me apronta uma dessa, penso na frente dele que se mostra mais espantado que nós. Enquanto o Vanildo embarca as bagagens no táxi, minha bexiga infartando com vida própria se apodera do banheiro pelo infinito salvador de um minuto e meio. Devolvida a nora em casa, na rodoviária digo o óbvio ao taxista: a sua ajuda não tem preço, seu Dilson, mas, fora isso, em quanto ficou a corrida? Ele mantém quase o preço inicial, e se só lhe pago praticamente o dobro é porque torrei o que tinha no livro não tenho na hora como lhe pagar o triplo. D-e-e-e-us lhe pague-e-e-e, ecoa o Chico no balão que assumiu o lugar da minha cabeça se equilibrando sobre um corpo que tropeça nas malas e com uma fome que não se decide se é de matar ou de morrer. Mas, incrível, com tanta pedra no caminho ainda chegamos a tempo. Passagens um e dois na mão, tentamos levar tudo em cima conosco porque esfriou mas não deu tempo de separar agasalho, e não pode porque é coisa demais, o rapaz diz. Lá dentro tem um moço no nosso lugar com outro bilhete número um. Desço e aviso o funcionário, que esclarece o problema: nossos bilhetes são no carro extra ali do lado, e não nesse onde acabamos de despachar embaixo a tralha toda no meio desse povaréu azucrinado. Quando chegamos nos realmente nossos lugares um e dois, eu-zumbi concentro toda minha energia física e mental na grande tarefa de baixar o assento no máximo e detonar jantar o que jaz de gêneros alimentícios na minha bolsa: meia garrafa d'água e meio pacote grande de pipoca murcha. E finalmente posso começar a morrer de chorar, por dentro e por fora, sem pressa e sem pé de moleque onde tropeçar. Pelo Caio, que logo é por mim. Hoje cada hora vale ouro, o Neto tinha razão. "Caio vive", me escreveu a Paula Dip no autógrafo do livro homônimo ao documentário.
Acredito, pois nesse instante os Morangos Mofados dele acendem uma fogueira inteira em mim, labareda-lembrete que me faz enxergar no escuro do meu dentro um antigo recado que é só assim: volta a escrever sem ser tão eventual, enquanto não bate uma preguiça monumental impossível de vencer. "Voltar" é porque já fiz isso por vários anos, publicando crônicas e afins semanalmente lá na minha Araranguá. Como podia ter uma coleção tão grande de certezas aos vinte e poucos anos?!, me pego pensando agora. Comunico essa pequena e firme vontade-resolução ao meu cúmplice, pra depois eu não amarelar. Se não fosse pelos do Caio, ainda lembraria os metafóricos morangos da Clarice: "não esquecer que por enquanto é tempo de morangos". O motorista liga o ar no máximo, e ainda não faço ideia de que pouco depois ele escolherá uma trilha sonora alemã num volume que considero alto pra caramba madrugada, pruma viagem onde as curvas da estrada de Santos nunca antes foram tão sinuosas. Gripada e descabelada, nada mais me importa sob o casacão-cobertor. Como na resposta do meu tio Tadeu-criança quando a vó cobrava dele a reza antes de dormir, “brigado, boa noite, amém”.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

"Floreios" nas Histórias em Postais

Deixo aqui o link para o resultado de minha participação na I edição de HISTÓRIAS EM POSTAIS do Correio do Porto (Portugal), projeto com uma interessante proposta/pesquisa acerca da existência de uma "literatura postal". Agradecendo ao amigo escritor Igor Fabian por compartilhar a notícia desta convocatória. (Arte visual: téc. mista sobre papel, 2016, produzida especialmente para o projeto; poema publicado em 2014 pelo Sinergia (Florianópolis), em edição impressa resultante de seu oitavo concurso literário.

UPDATE:

Aqui a entrevista para o Correio do Porto decorrente da Convocatória.



terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Bagagem crônica

De novo aconteceu: a gente nem bem começa a viagem e já tá se atacando pelo excesso de bagagem. Isso que dessa vez nos demos o desafio de cada um vir com apenas uma mochila. Saracotear em trocentos estados de frio e calor entre sul e nordeste por trinta e cinco dias com meras duas mochilas? Porque não custa sonhar. Mas é lógico que bem antes da metade da viagem, embalando as tralhas de Teresina pra São Luiz, a gente já tem dois baita volumes a mais. Tipo a casa nas costas. (Acabo de me dar conta de que o meu arsenal de histórias pessoais envolvendo o assunto bagagens certamente encheria páginas e páginas de um livro bizarro e volumoso.) Cada vez que sou provocada sobre a parte que me cabe no crescimento assustador da bagagem, contra-ataco com o quase único argumento consistente que trago na ponta da língua: "Mas pra que tu foi trazer uma toalha de banho, um CASACO DE COURO e um TRAVESSEIRO que ocupa quase uma mochila inteira, se a viagem é quase toda no nordeste? Pode deixar que não tem perigo de ficarmos numa mísera pousada que não disponha de travesseiro e toalha". Ele esperneia que os três itens juntos cabem no mochilão dele, onde ainda sobra espaço até pra coisas minhas. Eu tento manter a linha argumentando que ele, agindo assim, é o próprio Débi em viagem na cena em que sai pra comprar "só umas coisinhas básicas", porque o Lóide o adverte de que não estão podendo gastar, e logo ele volta com um baita chapéu mexicano na cabeça e catorze cataventos de papel nas mãos. Nesse ponto exato da discussão estamos em Alcântara-MA, sentados num banco na praça da Matriz, que deduzo ser a principal ruína dessa incrível cidade histórica de casarios "que parou no tempo". Só deduzo, pois não contratei uma visitação guiada como desejava, justo pela insistência dele em me acrescentar que "Tu nunca sai de férias, o que tu faz é viagem de estudos, pra que isso tudo? Comé que tu descansa desse jeito? Toda vida esse excesso de bagagem e informação, a gente nunca descansa, a gente sempre volta pra casa no bagaço, que inferno, um dia tu ainda tem um infarto!" Só pra baixar a tensão da conversinha amigável, ok, aceito mea culpa, pronta pra seguir viagem me sentindo a maior analfabeta cultural daquela cidade, onde, afinal, fizemos ótimos outros passeios, ok, ok, não é o fim do mundo não se inteirar das particularidades que tornam mega pitoresco o lugar incrível e longérrimo de casa onde super excepcionalmente se está. Dito isto, a gente se olha na intolerância dum entendimento assim meio enviezado, sob a impossivelmente cínica promessa mútua de que não poderemos adquirir mais nada de volume no resto da viagem, que tá só na metade. Ok de um lado e de outro. Mas logo que a gente vira a esquina, tem um vendedor de artesanatos e antiguidades com peças na calçada. Vamo vê? Dez minutos depois, a gente segue pra pousada com DUAS ENORMES CHAVES DE FERRO na bolsa. No meu coração só cabe o feitiço de sentir séculos e séculos de histórias impregnados nessas duas chaves imensas que, explicou o vendedor, fizeram parte de antiquíssimos casarões dos quais talvez já não restem nem mesmo as ruínas.
Seguimos viagem cheios de uma ridícula gentileza transbordante, "eu pago, tu carrega", isso dito assim entremeado por sorrisos meio piegas e até abestalhados, cada qual não cabendo em si de tanta alegria pelo garimpo excepcional, uma verdadeira serendipidade, apesar de não precisarmos de uma balança pra saber que o par de chaves gigantes vai aumentar, tranquilamente, bem mais de dois quilos no tumulto volumoso que sempre é a nossa bagagem.