domingo, 23 de julho de 2017

ENVIANDO MEMÓRIAS PARA MAIO DE 2057

(Publicado primeiramente aqui (parte 1) e aqui (parte 2).


Quase fim do expediente forense, dia tal de abril de 2017. No próximo 9 de maio nossa Comarca de Laguna completará 160 anos de instalação, e acabo de ser convocada pelo doutor Paulo diretor do foro pra compor a comissão organizadora das festividades. Que honra! Cinco minutos depois, na primeira reunião, ele pede ideias à equipe recém-formada. Algumas se cruzam. Eu sugiro uma exposição, sei que tem uma coisarada linda doada por Laguna no Museu do Judiciário Catarinense, na sede do TJ. Relógio, urnas, processos antiquíssimos super bem cuidados, já vi pessoalmente a Jaqueline apresentando, doutor. Ele e os colegas de comissão gostam da ideia. Ah, também posso escrever uma crônica sobre a data. Amo quando falam em homenagear os servidores mais antigos, na ativa é a Rosane, e dos aposentados os colegas que são daqui começam a lembrar nomes que desconheço. De início Jucenara cita dona Betina, o Walmor que não é o que é pai de sete filhos fala em José Fonseca, e eu me disponho a entrevistá-los. Memórias, eis uma palavra que venero, ainda mais no plural. Dona Betina está com mais de oitenta anos, enxerga pouco e mora quase vizinha do fórum. Ansiedade minha a de encontrá-la. O Walmor vai comigo e nos apresenta, marcamos a entrevista. Dali a dois dias, enquanto do lado de fora o Brasil é uma sucessão de bizarrices principalmente políticas escorrendo pegajosas e nonsenses pela tevê, na sala de dona Betina está uma calmaria que dá gosto enquanto vou anotando os apontamentos de sua fala, Siiim, lembra muito bem, trabalhou ali sempre na mesma sede de hoje, de 1979 a 2004 (“Não tem problema se eu errar alguma coisa, né?”), várias salas tinham piso de madeira, gostava de faxinar o salão do júri aos sábados, sozinha, com bastante capricho, os cartórios particulares eram no fórum também, tem uma gratidão muito especial pela doutora Rejane, se lembra com carinho de muita gente, doutor Erwin, doutor Renato, doutor Maurício, Alceu, Valmir oficial de justiça, Maria Laura, doutor Aurino, José Fonseca, doutor Sidney Bandarra, Adelir, Abelardo, Elisa, e penso, seja o que Deus quiser se sair errado um ou outro nome do povo todo que habita essas suas lembranças.
Uma fotinho no fim, com seus santinhos por detrás. Eu já de saída, conto pra sua filha Nilza que descobrimos um parentesco distantemente enviesado: minha avó paterna era dos de Bem lá da Madre, sabe; a sogra da dona Betina também era. O Museu do Judiciário super nos ajuda com material e ideias pontuais para a expo (vida longa aos bons museus do mundo!): por exemplo, a Jaqueline me sugere incluir o registro de nascimento tardio da nossa conterrânea Anita. O processo está no Arquivo Central, o Rodolfo da primeira cível agiliza o pedido pra nós. Dias depois, quando no meio da tarde da sexta-feira dia cinco cai nosso sistema SAJ, aproveito pra fazer o levantamento dos restos mortais dos livros de sentença mais antigos daqui do cartório criminal, alguns quase centenários. Eles acabarão não entrando nessa expo, mas quero mostrá-los ao Sandro quando vier de Floripa trazendo os empréstimos do Museu.
O Diego meu chefe registra pra mim essa arqueologia cartorária eventual, que eu amo mais a cada página impregnada de fungo e memórias que leio. Na sequência ficamos também sem eletricidade, na Laguna inteira, e estou no arquivo da primeira cível com a lanterna do celular ativada, garimpando, quando fico sabendo que o processo da Anita chegou. Euforia é pouco.
Enquanto isso, em Cape Town o Ramon me envia cartões-postais das suas longínquas miniférias africanas, que só me chegarão bem depois do retorno dele próprio, mas ele, que além de secretário do foro também compõe a comissão, ainda chega a tempo de fazer muito pelo aniversário da Comarca.
Graças à ajuda da Maria Cláudia consigo a entrevista na casa do nonagenário senhor José Fonseca, na presença da filha Eveline e da esposa Mírian, super queridas e prestativas. Tudo muito rápido pra incomodar o menos possível os tratos com a saúde do entrevistado. “Sim... Recorda o trabalho no fórum... De 1951 a 1984... Trabalhou inclusive com sua irmã Elisa... Tem ótimas lembranças de muita gente... Vinícius Duarte... Neri Demétrio... Carlinhos Horn... Doutor Erwin... Perguntado, diz que conheceu Arcângelo Bianchini, o que dá nome à rua onde o fórum se situa. Preciso saber mais sobre o Arcângelo em razão de questões incidentais de reuniões da comissão. Recorro ao amigo historiador Ronaldo David, de Criciúma, e recebo dados preciosos sobre esse imigrante italiano visionário e empreendedor que tanto fez pela região sul do estado. Já tenho as duas entrevistas mas a crônica vai ficando pro final. Aliás pra não sei quando, porque tudo nesse mês é mais urgente. Cada coisa vai encontrando seu melhor jeito de acontecer. Conseguimos com a Fundação Lagunense de Cultura o empréstimo de painéis (elucidativos da Justiça nos antigamentes da cidade) e outras peças do Museu Anita Garibaldi. Ivonete e Rosane deixam tudo brilhando antes de incluí-los na exposição. Conseguimos apoio excelente da Divisão de Artes Gráficas da nossa instituição TJSC, tudo tratado por telefone e email e chegando por correio em dias de ansiedade e correria. Conseguimos fotografias antigas das várias sedes do foro da Comarca, graças ao acervo do Foto Bacha, do Carlos Marega e do Carlinhos Horn. “O dia nove”, é como nós da comissão o referimos. O dia nove é uma entidade com muita vida própria. Movimentadíssimo com apresentação da centenária Banda Carlos Gomes, exposição, visita de autoridades e de grande público, discursos emocionados, hasteamento de bandeiras, entonação de hinos, mostra de redações de estudantes municipais, sessão especial das câmaras de vereadores de Laguna e Pescaria Brava, cobertura jornalística do programa Justiça Legal e Unisul TV, ação de graças com o padre Lenoir que começa lembrando que tudo se resume na palavra gratidão, Joãozinho Rodrigues cantando lindamente em italiano, parabéns pra você e bolo de aniversário com Rosane e doutor Renato soprando juntos simbolicamente as velinhas de 160 anos da Comarca, entrega de placas de homenagens a autoridades, servidores aposentados ou na ativa e outros, etc. É um dia infinito, mas mesmo assim ele não resume a longa movimentação excepcional que embalará a Comarca durante todo o mês.
Ainda teremos visitação de escolas, apresentação de coral e banda da Fundação Bradesco, distribuição de mudas de árvores frutíferas, audiência simulada educativa para o público infantojuvenil, sessão especial de julgamento da Quarta Turma de Recursos de Criciúma, que ao final do dia nos presenteia com uma muda de Árvore da Felicidade, amém.
Numa das reuniões iniciais, meu chefe doutor Renato, juiz com maior tempo de judicância na história de Laguna, havia mencionado um crucifixo de parede doado pela Comarca à Paróquia anos atrás, e, a pedido do doutor Paulo, vou com Walmor e Ingrid Leonardo atrás de Lurdinha Silva, pessoa incumbida de nos dar acesso à Igreja São Francisco de Assis, na Comunidade do Mato Alto, onde, pela manhã, em conversa com o padre, o Walmor descobrira ser o paradeiro do tal crucifixo, e pra não deixar dúvidas do tiro certeiro, as lentes da Ingrid registram, do alto duma escada improvisada, até a plaquinha de metal afixada ao pé do grande crucifixo no topo do altar principal: “Tribunal do Jury de Laguna – Maio de 1929”.
A Lurdinha se surpreende, sempre limpam ali sem reparar na inscrição. Ela nos garante que visitará o fórum pra ver tudo, e vai mesmo.
Dias depois, a Maria do Carmo passa pela exposição enquanto estou também no alto duma escada acrescentando as fotos do crucifixo e entorno recém-chegadas da Gráfica, e me ajuda de longe indicando se e onde preciso endireitar as imagens. Vou sempre tentando pensar numa data oportuna pra publicar a futura crônica, que consigo pelo menos começar na manhã do dia nove, entre a correria intraduzível da montagem da exposição e dos demais preparativos da data, com Marcelo se virando em cinco pra ajudar a pendurar quadros, erguer expositores, prender balões, faixas, redações, enquanto a Cida me ajuda a preparar um móvel da sala da Regina assessora pra ser o suporte do processo da Anita. Fico sabendo da ideia da sua xará doutora Regina, integrante da comissão, com execução do seu esposo doutor Vilson: uma CÁPSULA DO TEMPO! Genial, ge-ni-al, eu falo.
Pra guardar os souvenirs desse mês, pra ser aberta somente nos 200 anos da Comarca. Mediante portaria determinando que se convide, pro evento de abertura, os membros desta comissão que formamos, ou aqueles que daqui quarenta anos nos representem. Preciso avisar o Hiago, nunca se sabe. Por falar nisso, terminando maio, pelo whatsapp a Maria Cláudia me informa sem vontade nenhuma: o senhor José Fonseca, sabe, que tu entrevistou... Foi-se... Voar, eu penso. Obrigada por ter participado e se dedicado tanto. E agora, senhor José? Que o seu voo merecido seja leve, e lindo, e sabedor da minha e nossa imensa gratidão. Assim que fico sabendo da cápsula, reforço pros colegas assinarem a lista de presença da exposição, e o Sandro quando volta pra recolher os empréstimos é o penúltimo a registrar seu nome.
Tanto a mais acontece no meio desse maio, tantos outros e outras participam, ajudam, visitam, enriquecem um mês de muito trabalho extra mas pra lá de especial. No fim, pra tratar de uma cerimônia sui generis agendada com quarenta anos de antecedência, até que minha crônica saiu bem adiantada.

domingo, 9 de julho de 2017

Um três de julho pra chamar de muito meu

Paraty, 2016. Último dia-domingo de FLIP. Foguete, percussionista-aniversariante vai cedo de bike pegar o bus pro Rio, é o primeiro de nós 5 a se despedir na pousada do japonês. Espírito de guri, na identidade 66.
Neto é o próximo, pra aproveitar o fim do dia em Sampa. "Férias de uma semana, minha cara, cada hora vale ouro”. A Laura vai de caroneira. Antes vamos juntos pela última vez no centro histórico arrematar o que ainda tá rolando nessa edição que homenageia Ana Cristina César, a Ana C.
O acaso de falar da minha fixação pelo Luis Fernando Veríssimo com o Michel Terra, da Folha, que nos atende super atencioso, o faz revelar que ancestrais sul-rio-grandenses seus inspiraram personagens consagrados do Érico Veríssimo, pai daquele um que amo de paixão.
E logo somos só eu e Vanildo na chepa da FLIP. Me orgulho pela nossa bagagem estar pronta e guardada no quarto da pousada desde nosso check out ao meio-dia, cortesia que o recepcionista nos oferecera na noite anterior. Só embarcaremos às 22:50h, já tinha escolhido o último horário pra passar esse dia sem correria. No almoço, compartilhando a mesa num restaurante lotado com o professor de redação Paulo Jorge, da Bahia, emendamos uma ensolarada conversa sem fim.
É um raro dia em que estamos com tudo em dia, e claramente nem sei como se age num dia assim. Como tinha presenteado o Neto no último instante com um Waly Salomão fininho recém-comprado pro Vanildo, volto sorrateira na livraria da FLIP. Já na fila do caixa, algo inevitável acontece: uma fotobiografia e-nor-me da Clarice se apaixona por mim.
Foi-se a mala perfeita, sou passional e resignada: sei disfarçar a tonelada extra na bolsa que arrastarei até 22:50h, já que eu tinha jurado-juradinho não agregar mais nenhum peso ou volume na bagagem. O fim de tarde no centro histórico é eletrizado pela passagem (pra mim surpresa) do Cinebloco.
E uma sugestão da Renata eu tinha reservado pra essa última noite: o filme-documentário “Para sempre teu... Caio F”, da Paula Dip, no SESC, às 20h. Com previsão de encerrar às 21:30h, na prática ele termina às 21:40h. Tudo bem, 70 minutos pro embarque. Me dá um medo feliz de pensar que no meio de tanta programação simultânea eu poderia ter perdido essa. Rê, valeu muito a indicação, é só o que penso. Enquanto descemos do sótão-cinema pro centro histórico vazio, espio as caras ao meu redor e confirmo aliviada que há mais chorões entre os comparsas de última sessão. Já na rua, enquanto vou tentando driblar o calçamento pé de moleque, percebo minha confusão mental: ainda tô chorando por dentro, mas já não dá tempo de parar, e fora isso tô com a bexiga explodindo.
Entramos no primeiro táxi, combinamos preço, e no caminho já vamos adiantando se ele pode voltar às 22:30. Ele diz que não vale a pena, até dez minutos pode esperar na pousada mesmo. Mas... Pausa pra um milênio de desespero. "Me segura qu'eu vou dar um troço" é o nome do livrinho do Waly que comprei duas vezes no mesmo dia. Premonição? Na hora não penso em nada. Encontramos a pousada fe-cha-da, às escuras, o portão trancado, ninguém na portaria nem atendendo nenhum dos telefones. Simplesmente n-i-n-g-u-é-m. No meu nervosismo não me atino nem pra telefonar, é o taxista quem liga. Nós três no escuro chamamos em coro pelo japonês. Com o tempo apertando e sem ninguém na vizinhança, sugiro um "plano infalível" consistente em pedir uma escada no bar em frente, pular o portão, arrancar a porta do quarto onde ficaram as malas, registrar um B.O. com o testemunho do deu Dilson taxista, depois em casa ligar pro japonês, explicar tudo e repor o valor do conserto. "Tu tá doida?", Vanildo me diz, mas vai até o bar, e volta com o endereço do dono da pousada. Nisso recordo uma ligação perdida no celular, com código do Rio. Seria pra avisar que fechariam? Peço ao seu Dilson que retorne pra mim, meu código é do sul e tô histérica nervosa demais. Nada, é uma amiga carioca que fica uma arara ao saber que não reconheci seu número. Bota asa nesse carro, seu Dilson, pelamooordedeus! Achamos fácil a casa, ali pertinho, e a nora do japonês volta conosco. Lá em frente outra vez, ela liga pro sogro que atende de primeira, estava lá dormindo o tempo todo. Seu Maeda, nunca lhe disse mas sempre o admirei pelas respostas aos meus verborrágicos e-mails anuais de reserva pra FLIP, os seus tão haicais na incrível terceira pessoa jurídica do pretérito plural. O senhor agora me apronta uma dessa, penso na frente dele que se mostra mais espantado que nós. Enquanto o Vanildo embarca as bagagens no táxi, minha bexiga infartando com vida própria se apodera do banheiro pelo infinito salvador de um minuto e meio. Devolvida a nora em casa, na rodoviária digo o óbvio ao taxista: a sua ajuda não tem preço, seu Dilson, mas, fora isso, em quanto ficou a corrida? Ele mantém quase o preço inicial, e se só lhe pago praticamente o dobro é porque torrei o que tinha no livro não tenho na hora como lhe pagar o triplo. D-e-e-e-us lhe pague-e-e-e, ecoa o Chico no balão que assumiu o lugar da minha cabeça se equilibrando sobre um corpo que tropeça nas malas e com uma fome que não se decide se é de matar ou de morrer. Mas, incrível, com tanta pedra no caminho ainda chegamos a tempo. Passagens um e dois na mão, tentamos levar tudo em cima conosco porque esfriou mas não deu tempo de separar agasalho, e não pode porque é coisa demais, o rapaz diz. Lá dentro tem um moço no nosso lugar com outro bilhete número um. Desço e aviso o funcionário, que esclarece o problema: nossos bilhetes são no carro extra ali do lado, e não nesse onde acabamos de despachar embaixo a tralha toda no meio desse povaréu azucrinado. Quando chegamos nos realmente nossos lugares um e dois, eu-zumbi concentro toda minha energia física e mental na grande tarefa de baixar o assento no máximo e detonar jantar o que jaz de gêneros alimentícios na minha bolsa: meia garrafa d'água e meio pacote grande de pipoca murcha. E finalmente posso começar a morrer de chorar, por dentro e por fora, sem pressa e sem pé de moleque onde tropeçar. Pelo Caio, que logo é por mim. Hoje cada hora vale ouro, o Neto tinha razão. "Caio vive", me escreveu a Paula Dip no autógrafo do livro homônimo ao documentário.
Acredito, pois nesse instante os Morangos Mofados dele acendem uma fogueira inteira em mim, labareda-lembrete que me faz enxergar no escuro do meu dentro um antigo recado que é só assim: volta a escrever sem ser tão eventual, enquanto não bate uma preguiça monumental impossível de vencer. "Voltar" é porque já fiz isso por vários anos, publicando crônicas e afins semanalmente lá na minha Araranguá. Como podia ter uma coleção tão grande de certezas aos vinte e poucos anos?!, me pego pensando agora. Comunico essa pequena e firme vontade-resolução ao meu cúmplice, pra depois eu não amarelar. Se não fosse pelos do Caio, ainda lembraria os metafóricos morangos da Clarice: "não esquecer que por enquanto é tempo de morangos". O motorista liga o ar no máximo, e ainda não faço ideia de que pouco depois ele escolherá uma trilha sonora alemã num volume que considero alto pra caramba madrugada, pruma viagem onde as curvas da estrada de Santos nunca antes foram tão sinuosas. Gripada e descabelada, nada mais me importa sob o casacão-cobertor. Como na resposta do meu tio Tadeu-criança quando a vó cobrava dele a reza antes de dormir, “brigado, boa noite, amém”.