domingo, 9 de julho de 2017

Um três de julho pra chamar de muito meu

Paraty, 2016. Último dia-domingo de FLIP. Foguete, percussionista-aniversariante vai cedo de bike pegar o bus pro Rio, é o primeiro de nós 5 a se despedir na pousada do japonês. Espírito de guri, na identidade 66.
Neto é o próximo, pra aproveitar o fim do dia em Sampa. "Férias de uma semana, minha cara, cada hora vale ouro”. A Laura vai de caroneira. Antes vamos juntos pela última vez no centro histórico arrematar o que ainda tá rolando nessa edição que homenageia Ana Cristina César, a Ana C.
O acaso de falar da minha fixação pelo Luis Fernando Veríssimo com o Michel Terra, da Folha, que nos atende super atencioso, o faz revelar que ancestrais sul-rio-grandenses seus inspiraram personagens consagrados do Érico Veríssimo, pai daquele um que amo de paixão.
E logo somos só eu e Vanildo na chepa da FLIP. Me orgulho pela nossa bagagem estar pronta e guardada no quarto da pousada desde nosso check out ao meio-dia, cortesia que o recepcionista nos oferecera na noite anterior. Só embarcaremos às 22:50h, já tinha escolhido o último horário pra passar esse dia sem correria. No almoço, compartilhando a mesa num restaurante lotado com o professor de redação Paulo Jorge, da Bahia, emendamos uma ensolarada conversa sem fim.
É um raro dia em que estamos com tudo em dia, e claramente nem sei como se age num dia assim. Como tinha presenteado o Neto no último instante com um Waly Salomão fininho recém-comprado pro Vanildo, volto sorrateira na livraria da FLIP. Já na fila do caixa, algo inevitável acontece: uma fotobiografia e-nor-me da Clarice se apaixona por mim.
Foi-se a mala perfeita, sou passional e resignada: sei disfarçar a tonelada extra na bolsa que arrastarei até 22:50h, já que eu tinha jurado-juradinho não agregar mais nenhum peso ou volume na bagagem. O fim de tarde no centro histórico é eletrizado pela passagem (pra mim surpresa) do Cinebloco.
E uma sugestão da Renata eu tinha reservado pra essa última noite: o filme-documentário “Para sempre teu... Caio F”, da Paula Dip, no SESC, às 20h. Com previsão de encerrar às 21:30h, na prática ele termina às 21:40h. Tudo bem, 70 minutos pro embarque. Me dá um medo feliz de pensar que no meio de tanta programação simultânea eu poderia ter perdido essa. Rê, valeu muito a indicação, é só o que penso. Enquanto descemos do sótão-cinema pro centro histórico vazio, espio as caras ao meu redor e confirmo aliviada que há mais chorões entre os comparsas de última sessão. Já na rua, enquanto vou tentando driblar o calçamento pé de moleque, percebo minha confusão mental: ainda tô chorando por dentro, mas já não dá tempo de parar, e fora isso tô com a bexiga explodindo.
Entramos no primeiro táxi, combinamos preço, e no caminho já vamos adiantando se ele pode voltar às 22:30. Ele diz que não vale a pena, até dez minutos pode esperar na pousada mesmo. Mas... Pausa pra um milênio de desespero. "Me segura qu'eu vou dar um troço" é o nome do livrinho do Waly que comprei duas vezes no mesmo dia. Premonição? Na hora não penso em nada. Encontramos a pousada fe-cha-da, às escuras, o portão trancado, ninguém na portaria nem atendendo nenhum dos telefones. Simplesmente n-i-n-g-u-é-m. No meu nervosismo não me atino nem pra telefonar, é o taxista quem liga. Nós três no escuro chamamos em coro pelo japonês. Com o tempo apertando e sem ninguém na vizinhança, sugiro um "plano infalível" consistente em pedir uma escada no bar em frente, pular o portão, arrancar a porta do quarto onde ficaram as malas, registrar um B.O. com o testemunho do deu Dilson taxista, depois em casa ligar pro japonês, explicar tudo e repor o valor do conserto. "Tu tá doida?", Vanildo me diz, mas vai até o bar, e volta com o endereço do dono da pousada. Nisso recordo uma ligação perdida no celular, com código do Rio. Seria pra avisar que fechariam? Peço ao seu Dilson que retorne pra mim, meu código é do sul e tô histérica nervosa demais. Nada, é uma amiga carioca que fica uma arara ao saber que não reconheci seu número. Bota asa nesse carro, seu Dilson, pelamooordedeus! Achamos fácil a casa, ali pertinho, e a nora do japonês volta conosco. Lá em frente outra vez, ela liga pro sogro que atende de primeira, estava lá dormindo o tempo todo. Seu Maeda, nunca lhe disse mas sempre o admirei pelas respostas aos meus verborrágicos e-mails anuais de reserva pra FLIP, os seus tão haicais na incrível terceira pessoa jurídica do pretérito plural. O senhor agora me apronta uma dessa, penso na frente dele que se mostra mais espantado que nós. Enquanto o Vanildo embarca as bagagens no táxi, minha bexiga infartando com vida própria se apodera do banheiro pelo infinito salvador de um minuto e meio. Devolvida a nora em casa, na rodoviária digo o óbvio ao taxista: a sua ajuda não tem preço, seu Dilson, mas, fora isso, em quanto ficou a corrida? Ele mantém quase o preço inicial, e se só lhe pago praticamente o dobro é porque torrei o que tinha no livro não tenho na hora como lhe pagar o triplo. D-e-e-e-us lhe pague-e-e-e, ecoa o Chico no balão que assumiu o lugar da minha cabeça se equilibrando sobre um corpo que tropeça nas malas e com uma fome que não se decide se é de matar ou de morrer. Mas, incrível, com tanta pedra no caminho ainda chegamos a tempo. Passagens um e dois na mão, tentamos levar tudo em cima conosco porque esfriou mas não deu tempo de separar agasalho, e não pode porque é coisa demais, o rapaz diz. Lá dentro tem um moço no nosso lugar com outro bilhete número um. Desço e aviso o funcionário, que esclarece o problema: nossos bilhetes são no carro extra ali do lado, e não nesse onde acabamos de despachar embaixo a tralha toda no meio desse povaréu azucrinado. Quando chegamos nos realmente nossos lugares um e dois, eu-zumbi concentro toda minha energia física e mental na grande tarefa de baixar o assento no máximo e detonar jantar o que jaz de gêneros alimentícios na minha bolsa: meia garrafa d'água e meio pacote grande de pipoca murcha. E finalmente posso começar a morrer de chorar, por dentro e por fora, sem pressa e sem pé de moleque onde tropeçar. Pelo Caio, que logo é por mim. Hoje cada hora vale ouro, o Neto tinha razão. "Caio vive", me escreveu a Paula Dip no autógrafo do livro homônimo ao documentário.
Acredito, pois nesse instante os Morangos Mofados dele acendem uma fogueira inteira em mim, labareda-lembrete que me faz enxergar no escuro do meu dentro um antigo recado que é só assim: volta a escrever sem ser tão eventual, enquanto não bate uma preguiça monumental impossível de vencer. "Voltar" é porque já fiz isso por vários anos, publicando crônicas e afins semanalmente lá na minha Araranguá. Como podia ter uma coleção tão grande de certezas aos vinte e poucos anos?!, me pego pensando agora. Comunico essa pequena e firme vontade-resolução ao meu cúmplice, pra depois eu não amarelar. Se não fosse pelos do Caio, ainda lembraria os metafóricos morangos da Clarice: "não esquecer que por enquanto é tempo de morangos". O motorista liga o ar no máximo, e ainda não faço ideia de que pouco depois ele escolherá uma trilha sonora alemã num volume que considero alto pra caramba madrugada, pruma viagem onde as curvas da estrada de Santos nunca antes foram tão sinuosas. Gripada e descabelada, nada mais me importa sob o casacão-cobertor. Como na resposta do meu tio Tadeu-criança quando a vó cobrava dele a reza antes de dormir, “brigado, boa noite, amém”.

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