domingo, 12 de agosto de 2018

UM BEM-TE-VI NA MINHA CASA

(Publicado primeiramente no Jornal O Correio)

São sete horas da manhã, e, diferentemente do Cazuza, não vejo o Cristo na janela: moro em Laguna e estou em casa. O despertador do meu celular é perfeito, e cruel. Não estando de férias, com ou sem a bênção do Cristo na janela é hora de fazer o dia render. Mas, nesta última semana de férias escolares, minha casa e rotina são visitadas por um ser estranho e raro: uma criança, de verdade, que tem sete anos e se chama Ezequiel. Ele ainda dorme, na sala, enquanto repasso mentalmente, antes de me levantar, tudo que tenho pra fazer hoje. Nisso, nem fazem barulho mas ouço, ouço mais de saber do que de ouvir: seus passinhos de pluma já lá vêm, da sala pro quarto. Ele se enfurna tão rápido e sonâmbulo pra dentro das cobertas e do nosso abraço, primeiro no do tio, só depois será no meu, que não deve nem perceber o frio medonho que tá fazendo. Ainda mal acredito, um gurizinho de novo na minha casa. A criança mais recente da minha família, antes dele, tinha sido meu próprio filho, já faz tanto tempo. Durante a semana, e a despeito dele nem ser tão levado, pequenos desastres acontecem. Não me desespero: lembro vagamente que isso é normal. Como na tarde em que o tio Van faz uma fogueira: Ezequiel fica pertinho se aquecendo, maravilhado. Tio Van manda sair de tão perto, que ali ele pode se queimar. Ele sai contrariado, fica vendo a fogueira a uns três ou quatro metros de distância. E então, do fogo salta uma fagulha que acerta bem na sua bochecha! Ouvindo o relato, lembro quando quase quebrei a perna atravessando uma rua na faixa: era bem lá que se escondia um buraco. Sei que de longe sua mãe se preocupa se ele tá bem, se tá agasalhado, se alimentando, etc. Digo que quando ele nasceu, botaram estômago de passarinho nele. Nem besteira ele faz muita questão de comer. Agora tô dizendo que ele tem apetite de grilo, ele ri. Mas dia desses ele come o almoço com tanta vontade, que até me empolgo de fazer uma fotinho no whats’app pra sua mãe, minha sobrinha. Porém, mesmo com tanta pomada ele ainda tá com o queimadão na cara, e eu não contei o episódio da fogueira pra ela. Ok, não chega a ser uma grande mentira eu fotografá-lo mostrando apenas o lado do rosto sem machucado. O marketing, a publicidade, estão aí mostrando quase sempre só o lado bom das coisas. 
Já devem ser umas sete e cinquenta. Tio Van se levanta e vai no mercado providenciar o café. É agora: é hora dele se aninhar diretamente em mim, sei que é. Meu Deus, uma criança de verdade, de novo, tão perto. Olho como ele respira: parece gente. Quente. Em posição fetal, ele cabe inteiro no meu abraço dentro das cobertas. Levinho, ele é pura pluma, amarela. Tanta coisa eu tenho pra hoje, me lembro. Quando vai acordando, ele tenta de novo me ensinar a fazer peido com o sovaco. Realmente não consigo aprender, mas falo besteiras pra que não desista de mim, também sou uma criança, mesmo que talvez não pareça. Não é muito fácil, mas tento também que ele entenda nosso vínculo no mundo civil: eu sou sua tia-avó. Explico que quando fizer doze anos ele vai poder vir de ônibus nos visitar, embarcando sozinho em Araranguá. Cismado com a expressão tia-avó, ele me pergunta à queima-roupa se quando tiver doze anos nós aqui em Laguna já estaremos velhinhos. São oito e quarenta e um quando saio da cama, ajeitando pra que continue confortável no seu meio-sono preguiçoso de fim de férias. Me levanto, enfim, metade abismada e metade grata, não exatamente ao Cristo, nem à Nossa Senhora da Glória, cuja imagem, no alto do morro que leva seu nome, da minha janela eu talvez conseguisse divisar. Com o coração quente, me levanto grata por qualquer coisa que me escapa em palavras, mas que sei que tem relação com o alívio de ser uma pessoa, e não uma máquina, como meu despertador. Tenho, portanto, o direito de errar. E até o de, errando, possivelmente acertar. 

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