A primeira vez que ouvi falar da luta
antimanicomial brasileira, comemorada em dezoito de maio, foi com o próprio
Austregésilo Carrano Bueno, lá pelo ano 2000, quando ele já era forte
liderança na causa e amargava batalha ferrenha para poder dar seu
testemunho e divulgar seu livro “O Canto dos Malditos”, adaptado
para o cinema sob o título de “Bicho de Sete Cabeças”.
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Divulgação/internet |
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Divulgação/internet |
Isso foi
numa palestra que deu em Araranguá, promovida pelo pessoal de
psicologia da Unisul. Ele ria ao contar quão cínica era sua
situação no momento: sobrevivendo a uma romaria de internações em
manicômios nojentos e bizarros que durou anos, com direito a sessões
infinitas de eletrochoques que lhe renderam sequelas
para toda a vida, ele denunciou no livro o que chamava de máfia dos
manicômios, citando inclusive o nome do médico que o torturou “em
especial” naquele contexto. A família deste o processou, e
Carrano, então, estava proibido judicialmente de mencionar o nome do
seu algoz nas palestras e debates, sob pena de multa altíssima que
lhe deveria em caso de descumprimento.
Pelo que sei, ele nunca
obedeceu.
Até seu livro foi censurado e chegou a ter a venda
proibida (o primeiro caso desde a ditadura militar), o que acabou
aumentando muito sua procura, inclusive pelos alunos de psicologia da universidade
paranaense onde outrora, segundo ele, seu torturador, ali
catedrático, havia sido dos nomes mais respeitados.
Desde
2008 já não temos Carrano, o pioneiro no país a ajuizar ação
indenizatória por erro de
diagnóstico e
tratamento
torturante contra psiquiatras.
Mas
sua
luta sobrevive; sua memória, forte e irreverente, me lembra o
privilégio de conhecê-lo e de ter podido manter contato com ele por bom tempo.
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Na última vez em que estive com ele (tivemos a sorte de encontrar o Hermeto Pascoal numa agência bancária :) |
Só
bem depois descobri a importância do nome de Nise daSilveira, psiquiatra que entre tantos grandes feitos ao longo da vida (incluindo o trabalho incrível que resultou no Museu de Imagens do Inconsciente), se recusou sistematicamente à então comum prática do
eletrochoque. Ela, cuja vida também já inspirou filmes e muitos
estudos, merece uma rendição de pensamentos à parte.
Só mais depois ainda é que vim a
descobrir, apaixonada e sem reservas, o nome de Arthur Bispo do Rosário. O sergipano de Japaratuba que depois de um surto, no Rio,
acabou internado num manicômio onde passou quase cinquenta anos,
alternando períodos de internação compulsória e facultativa, com
suas particularidades tantas que o fazem merecedor de muitos, muitos,
muitos textos e estudos.
Bispo, o ser humano que, entre internos e
funcionários, mais tempo passou dentro da Colônia Juliano Moreira,
onde produziu sua arte incansavelmente, em especial bordando,
desfiando roupas velhas para inventar sua linha, e assim deixando sua
marca única estampada no mundo.
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Arquivo pessoal |
No mundo, diga-se, equilibrado entre a arte e
a loucura: esses textos e estudos procuram, cada qual por seu viés,
ainda hoje entender o fenômeno que ele foi (tentativas que já renderam filmes, livros, teatros...).
Sepultado em 1989 sem
honras e “sem deixar bens”, ele no entanto tem obras expostas em
museus dos mais respeitados ao redor do mundo.
A geografia e a
história da Colônia, hoje convertida em Museu Bispo do Rosário, no
bairro da Taquara, tão distante dos museus cariocas mais badalados e
conhecidos, vale muito a visita. Tem guia que acompanha nas
exposições, montadas com obras de Bispo e de outros atuais usuários
do espaço, onde funciona atividades de CAPS, oficinas de arte em mosaico e
outras.
E, pra quem ama gosta, ainda se pode visitar o entorno, incluindo a passagem por ruínas imperiais e a cela onde Bispo passava meses voluntariamente
trancado, produzindo. Transformando lixo em sua forma mais expressiva
de estar no mundo de maneira única.
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Arquivo pessoal |
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Arquivo pessoal |
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Arquivo pessoal |
Quando cheguei ao “Manto da
Apresentação”, que ele produziu para se apresentar a Deus no dia
do Juízo Final, o guia me disse, orgulhoso: “Aqui, essa é a nossa
Monalisa”. Era meu terceiro de trinta dias de férias, e eu então sabia que
toda a viagem recém-começada já tinha valido a pena, ali mesmo, resumidamente, na frente
do Manto do Bispo.
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Arquivo pessoal |
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O cenário da então Colônia, com datas e nomes cruzando a todo tempo a "paisagem"... Está tudo ali, imortalizado em bordados feitos com roupas velhas que ele, interno que não recebia visitas, se desdobrava pra conseguir |
Esse punhado de memórias esparsas é dizer
gratidão a essas pessoas.
E lembrar palavras da Nise: “Não se
curem além da conta. Gente curada demais é gente chata”.
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Divulgação/internet |
O tempo não para, e se lembrar também é viver, lembrei que já deu dezoito de maio outra vez.